Rezar por deus, dormir com o diabo

Não é novidade a existência de contradições e hipocrisias permanentes nos palcos do parlamentarismo e da governação na sociedade ocidental em que vivemos. É preciso apesar disso alguma cautela sobre onde colocar o centro da política

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Rafael Marchante/Reuters

Caiu o governo Passos Coelho/ Paulo Portas, depois de quatro anos de convulsão e de periclitância, de mudanças radicais na sociedade portuguesa, de empobrecimento. Agora, e há já um mês, discute-se muito a insanável incompatibilidade entre PSD/CDS e PS, assim como se avança, assim muito em jeito de mau-olhado, que PS, BE, PCP e PEV não se entenderão a médio prazo por causa da Europa, do Tratado Orçamental, da NATO, do Euro ou até (valha-nos deus) do Tratado Transatlântico. Mais divertidos são aqueles que vêem no equilíbrio das contas públicas a grande divisória entre PS e os partidos à sua esquerda. É que PSD/CDS juraram todos os dias do seu governo que cumpririam metas, défice, dívida, e nunca o fizeram.

Não é novidade a existência de contradições e hipocrisias permanentes nos palcos do parlamentarismo e da governação na sociedade ocidental em que vivemos. É preciso apesar disso alguma cautela sobre onde colocar o centro da política. E se há sem dúvida importantes diferenças entre PS, BE, PCP e PEV (principalmente do primeiro em relação aos três consecutivos), é ainda maior a diferença entre aquilo que PSD e CDS dizem em relação a dívidas e défices e aquilo que fazem. Senão vejamos: aquelas juras de amor eterno ao Tratado de Maastricht, ao Tratado Orçamental, que ditam que os défices fiquem abaixo dos 3% do PIB e a dívida pública abaixo dos 60% do PIB, em que é que se materializaram?

A dívida pública quando o agora caído governo tomou posse em 2011 era de 102% do PIB (164 mil milhões de euros). No fim de 2014, 130,2% do PIB. Se a dívida não chega, olhemos para o défice. No final de 2011, 7,4% do PIB (menos do que os 11,2% de 2010). 7,2% em 2014.

Mas saltemos para a Europa para perceber como estas juras são generalizadas e a suas transgressões permanentes: em 2011, 24 dos 28 membros da União Europeia tinham défices excessivos. Em 2014 já eram menos, mas com 17 dos 28 membros da UE com défices excessivos, vê-se claramente que os “arcos da consolidação orçamental” são profetas profanos. De resto, segundo o Eurostat, a dívida pública do conjunto da União Europeia em 2013 era de 87,4% do PIB, quase 30 pontos acima da meta dos 60%. E surpresa das surpresas: Entre os 12 países que cumprem a meta dos 60% da dívida pública não está a Alemanha.

Ora, perante este cenário, dizer que se ama ou se odeia a consolidação orçamental é relativamente irrelevante. Se os que a amam e lhe juram fidelidade obtêm estes resultados, quem diz que os que a renegam não farão até melhor?

No fim, no fim, o que interessa mesmo é a austeridade. É para isso que servem as metas da consolidação orçamental: não é para equilibrar despesas com receitas, pois se assim fosse, as fortunas especulativas estariam seguramente na linha da frente das novas fontes de receitas, não se alienariam fontes públicas de receita a longo prazo com privatizações estúpidas, não se faria o saque permanente e reiterado a pensões, salários e serviços públicos. É que a austeridade é mesmo só para os pobres, e não para os ricos, para quem trabalha e não para quem vive de rendas e juros. E aqueles que gostam de rezar em público por deus, mas que dormem é com o diabo, terão alguma dificuldade em assistir a uma política que possa ser, até moderadamente, menos hipócrita do que a sua.

Cúmulo: Aníbal Cavaco Silva exigiu acordo entre os partidos à esquerda acerca do Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP) entre a União Europeia e os Estados Unidos. Ora vejam lá que magnífico exemplo: um presidente da República exige a quatro partidos eleitos que passem um cheque em branco sobre um documento secreto, ainda não subscrito por qualquer país e de contornos desconhecidos como condição para dar posse a um governo. Tudo vale para continuar o regime austeritário.

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