Do que precisamos é de carinho não é meus queridos? Compreensão e amorzinho, uma mãezinha que nos faça cafuné e um paizinho que nos diga o que fazer das nossas vidas.
Não nos venham cá contar como a república nunca passou dum coio de indigentes, de indignos e de cegos, que temos nós com isso? Como se a nossa simples passividade colectiva pudesse gerar tanta merda?! Deslarguem-me lá que eu tenho de ver a bola, encontrar ex-namoradas no Facebook, ignorar a última má-criação da criança, bater uma para ver se recalco o que me cerca.
O que nós queremos é sossego, duas refeições quentes, uma semana de praia e uma polícia que não bata muito nos brancos. De resto tanto faz que seja o Pedro como que seja o Paulo, ou o António ou a Joana descascada... que na realidade sejam o Ricardo e o Belmiro e a filha do outro de Angola e meia-dúzia de chineses ainda nos interessa menos, nem notamos...
Agora greve dos transportes, madraços! Quando o passe triplicar com a privatização logo choramos, por enquanto deixem-nos carpir para as solícitas câmaras como “só prejudicam quem quer trabalhar”.
Nunca sei quando é que é mais verdade, se nos dias cheio de sol no olhar em que parecemos todos lindos e únicos e até as imperfeições brilham como ângulos de pepita, se nos dias em que só vejo a nossa estupidez militante, a fundura do nosso medo, a cegueira do nosso egoísmo tão crónico, tão asfixiante, tão absolutamente total.
Não sei o que é vos hei-de fazer, o que é hei-de fazer comigo, o que hei-de fazer connosco: quero-nos abraçar e estrangular e animar e dar porrada e cantar e demolir a paus e pedras e pontapés no queixo e beijinhos na testa, e isto só nos primeiros quinze minutos de telejornal.
Raios partam o polegar oponível e a capacidade craniana e a transmissão de cultura; raios fundam a descoberta da agricultura e os livros sagrados e a acumulação primitiva e a dominação masculina e as pinturas de Lascaux; ao diabo a religião organizada e a semana de 35 horas e os ansiolíticos e o ensino laico e o monopólio de violência pelo estado e o rock sinfónico e o FMI e os gregos e os curdos e os palestinianos e as mães deles também; puta que pariu com o complexo de Édipo e a NSA e a sociedade civil e a falocracia e a cirurgia estética e a queima do gato e a democracia representativa e os dentes brancos e carnívoros do Portas... estávamos tão sossegadinhos na árvore, para o que nos havia de dar.
Vejo-nos concentradinhos com o botão do “Não Gosto” do Facebook e no aleitamento até o puto ter patilhas e nas listas do partidozeco da ‘vernissage’ e nas assinaturas nas ecografias antes do aborto e no Cristiano (bezerro d’ouro) e vejo como somos um vírus que infecta todo o metro quadrado a que aporta... ainda agora inventámos o plástico e já o mar está pejado de ilhas de lixo, ainda agora chegámos ao espaço e já a órbita está cheia de esterco voador. E os sírios embrulhados em arame farpado é que são um problema a precisar de canhões e drones e rasteiras de loiras húngaras e tudo. Expliquem-me lá isto a uma criança por infectar com a nossa ‘normalidade’.
E os melhorzinhos separam o lixo e vestem a t-shirt do “Estou a salvar o planeta”... ahh se o planeta tivesse boca havia de se rir da soberba. Daqui a milénios, depois da nossa extinção, quando os insectos chegarem ao ponto civilizacional que lhes puxe o interesse pelo passado, os arqueólogos lá dos insectos do futuro hão de desenterrar os nossos contentores coloridos e chegar à conclusão que eles faziam parte dum qualquer exótico ritual mágico-religioso... e com razão.
A malandragem dos pequenos é medonha, a dos grandes passa por competitividade, eficácia, “mais-valia”... e os nossos pífios canhões sempre a apontar na direcção errada, e nós ainda a amar a vida já nem sabemos muito bem porquê.