Do conforto pobrezinho do meu lar

A maltinha anda ofegante e preocupada, mas continua gentil e sonsa e desavergonhada como se tem de ser para se sobreviver numa terra destas

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Rafael Marchante/ Reuters

Quatro paredes, duas das quais caiadas, que as outras dão para a praia. Com ingleses novos (e bêbados) em baixo e ingleses velhos (seráficos, muito finos) em cima, estamos a um passo de nos tornarmos na disneylandia do golfe e do marisco barato de alto ao fundo, mas antes isso que a Grécia do Varoufakis e dos nazis.

A cozinha é óptima (até das ervas daninhas da beira de estrada fazemos sopa), o quintal a norte é verde e bom de fruta e a sul amarelo e doce para o vinho, temos grossos porcos e vacas, grandes capões que assamos como ninguém e peixe que (ao contrário do resto do Mediterrâneo) não estragamos com demasiado condimento; queijo, aguardente, doces de amêndoa e ovos e limão (é só pedir) e sabemos tirar cafés.

A sala de estar do uso está infestada de tuk-tuks e a de cerimónia (no andar de cima) com o rio pejado de “cruzeiros” mas toda a gente continua a ser simpatiquíssima com os japonesinhos perdidos (caramba, até com os alemães: “Não têm todos de pagar pelo Schäuble!” dizemos de nós para nós enquanto lhes apontamos a direcção dos Clérigos).

O salário mínimo é uma graça, os políticos são como no tempo do Eça (cínicos, burros e putanheiros) e a polícia está cheia de "skinheads", metade dos jornalistas não sabe escrever, a academia é miserável mas vaidosa, temos um P.C. dos antigos e uma "intelligentsia" como todas as outras (curta e a escorrer presunção), os professores de liceu e os enfermeiros uns mártires profissionais e nem o Carlos Alexandre tem tomates para pespegar a pulseira num malandro tão óbvio e despudorado como o Ricardo; as velhas famílias, por mais decadentes e carunchosas (e trespassadas aos chineses ou à filha do camarada-presidente) ainda têm peso que chegue para evitar certas humilhações.

A Santa Madre ainda diz coisas mas ninguém lhe liga puto (no "pun intended"). A poesia é óptima (mas só os irmãos brasileiros e duas boazonas italianas é que sabem) e a música excelente (apesar de todas as meninas de boas famílias a imitar a Amália); a biblioteca está maltratada, cheia de pó e esvaziada mas a arte corre e saltita pela rua (como sempre, como em todo o lado), é só preciso um bocadito de atenção para a abocanhar e lhe sentir o gosto.

A maltinha anda ofegante e preocupada, mas continua gentil e sonsa e desavergonhada como se tem de ser para se sobreviver numa terra destas. Somos muito velhos cá em casa, une-nos a língua e a sardinha e o Eusébio e o despropositado ódio aos espanhóis, a salada de alface e tomate (com pimento grelhado ou rabanetes às vezes) e o Carlos Paredes e o tolerado racismo só contra ciganos, a festa da terra e o primo emigrante e o (ainda mais) despropositado amor que nos têm os brasileiros e os cabo-verdianos, o Dom Sebastião e o pastel de nata e a sátira reflexa do Lobo Antunes e da Rosa Ramalho, e o Cristiano é claro, o Cristiano!

Também o Camões e o Viriato e o colonialismo diferente e os milhões de sócios do Benfica e Monsanto a aldeia mais portuguesa de Portugal e os brandos costumes e mais mil mentiras que repetimos a nós mesmos para nos convencermos que, de alto a baixo (do Ricardo ao Manel dos Anzóis), de cima ao fundo (do Minho ao Guadiana), da esquerda severa à direita raivosa, somos todos mais ao menos relacionados, mais ou menos todos primos e sobrinhos e afilhados uns dos outros nem que seja em terceiro grau.

É mentira pois é, mas é a nossa mentira... que como todas as mentiras velhas há de ser desmascarada por uma criança desbocada e descarada (o rei vai nu!), um puto deslumbrante sem paciência para os nossos longos adeus, as nossas eternas esperas. Para lá de inevitável, é mesmo melhor assim ó antigos das velhas gerações: a loiça a partir é música quando comparada com o silêncio do armário em sossego. Venham as crianças que a partam!

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