Para a Páscoa na aldeia, descemos (eu, a garota e a mulher) da cheia casa dos avós maternos para a abandonada casa da falecida avó paterna. Carreiro pelos quintais: ensino a garota e a minha muito urbana esposa a não desfazer as barrocas de terra mole dos vizinhos, a calcar as silvas contra o chão antes de avançar, elas são espertas, aprendem logo.
Entramos pelo fim da horta da minha avó, o antigo galinheiro de pedra e o forno de cima são um destroço irreconhecível. Altas balsas marcam o início da propriedade do meu tio, risco calças e sapatos a abrir caminho por entre o matagal, as árvores (já não sei de que fruto) parecem esqueléticas mãos negras ao céu, o tanque de baixo é invisível debaixo do emaranhado vegetal, só se ouvem os sapos. Aqui havia couves galegas assinalo qual guia turístico, ali à direita há um poço com uma boca capaz de engolir uma vaca, agarro a mão à criança, aqui algures passamos do que, para a minha avó, deixava de ser horta e passava a ser jardim, procuro com a ponta do pé a laje de pedra (que eu sei que está lá) que faz de ponte sobre o fosso que separa (que separava) a produção da decoração.
As roseiras e os craveiros da minha avó ainda lá estão, mas só em esqueletos escuros e secos a cercar a casa. Abrimos caminho até ao pial, que está fantasmagoricamente na mesma: a mesma sombra de telhas velhas e cheiro a húmido fundo, muito liso como se a Belandina o tivesse varrido ainda hoje de manhã, muito branco como que caiado de véspera, vasos pesados alinhados contra a parede, o espelho marcado ao lado da torneira, a mesma vista para os montes cheios de pinheiros (só desfeiada pelo mamarracho grená que o vizinho da frente fez construir entretanto).
Meto a chave do meu pai à porta, cozinha, entrada da frente (que dá para a estrada), sala, quartos de trás, o chão range debaixo do peso do neto e da bisneta; as paredes nuas e a pouca mobília que sobreviveu às primas carredinha de caruncho, as traves gemem cansaço por cima de nós, a minha filha olha a toda a volta com os olhos muito abertos, todo este velho lhe é muito novo. Tiro da parede a grande chave da casa de baixo, enorme que lhe meto três dedos dos meus na pega, forço o mecanismo ferrugento, desço para o fresco escuro, a mesa grande ainda se aguenta, a entrada para o palheiro já começa a ceder, agarro a cachopa outra vez ao ver o tecto abaulado de todo: “Para ali não, que há ratos!”, “Vamos ver os ratos Tiago!”, responde-me ela, para horror da mãezinha murofóbica, já não chegamos a ver o forno mouro do palheiro.
Fecho as portas todas, sento-me no pial entre o olhar piedoso da mulher e a desatenção encantada da cachopa. Já sei que à saída me vou cruzar com uma prima velhinha que me vai perguntar como está a casa, e eu hei-de responder-lhe sombrio que “está tudo para cair” e se calhar era aqui que entrava a grande metáfora e eu vos mostrava como isto é tal e qual não sei o quê, mas não estou para aí virado e de toda a maneira cada vez tenho menos paciência para truques baratos de curso de escrita criativa. E se calhar a minha avó gostava que alguém lhe regasse as roseiras, mas se ela quisesse uma descendência de camponeses beirões não se tinha esforçado tanto para dar escola aos filhos.
Temos pena, mas esta semana não é sobre o êxodo rural, o esboroar da arquitectura vernacular tradicional ou a desagregação do ser humano, esta semana é só sobre a casa da minha avó Belandina que está para cair e desaparecer como, se calhar, tinha mesmo de ser.