A crise qualquer dia acaba-se

Não fosse a crise como é que se fazia dinheiro do nada? Como é que mantínhamos os salários ‘competitivos’ e o desemprego no nível ‘necessário’?

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Leonhard Foeger /Reuters

É mais velha do que tu, do que os teus pais, do que os teus avós. Já foi das reservas do petróleo, do ‘crash’ bolsista, do bolha imobiliária. As justificações são cada vez mais esotéricas: o crédito malparado, os juros do dívida, o mercado de futuros, a gripe aviária, o pulgão dos mirtilos... ‘whatever’ é o que vocês quiserem, o que eu sei é que é visita velha, com diferentes nomes e explicações diversas (cada vez mais complexas) mas com os resultados de sempre junto ao chão.

Houve um tempo em que foi acontecimento, já passou por ser facto, depois mais parecia moda, mas por agora acho que já percebemos todos que é constante, permanência, modo de produção, ideologia. Vá lá, menos fita! O nosso capitalismo liberal é só escolhas e liberdade, não gostas de Coca-Cola, ‘consome’ antes Pepsi. Pior estava a minha avó que dividia o burro com o vizinho!

Tens o ordenado congelado desde que começaste a trabalhar: não te metas é no sindicato que isso é coisa ultrapassada, do antigamente. O contrato a prazo nunca mais dá à luz um sem termo: venera antes o Porsche Cayenne do ‘criador de emprego’. Saltitas de estágio em estágio em estágio em estágio sem nunca pousares: mete na Etv que os feiosos explicam-te como a ‘flexibilização’ é linda e necessária. A senhora do centro de emprego encolhe a frustração e os ombros: concentra-te antes nos lindos olhos do Mota Soares e em como o Primeiro fugir ao fisco é culpa do fisco. Uma chefe-de-serviço da Inspeção-Geral das Finanças tem 2,5 milhões de dólares na Suíça: ahh isso é lá da vida privada dela diz-nos a amiga do Schauble. O gestor de conta já desistiu de te impingir cartões e já só te quer ‘consolidar’ a dívida: isso é capaz de ser falta de empreendedorismo da tua parte, vai mas é ao ‘Shark Tank’. O BES evaporou-se-te com as poupanças: queixa-te do governo, do Banco de Portugal e de Bruxelas, mas nunca (mas mesmo nunca) menciones o Ricardo. Ai achas indecente os rapazes da Assembleia fazerem os negócios de manhã e as leis que fiscalizam os negócios à tarde: tu queres é ‘gulag’ e Coreia do Norte. Andas fodido e mal pago e ainda por cima a rádio só dá dos The Gift para baixo, não stresses que qualquer dia o telhado do Conservatório abate e vacina-se logo a música para a próxima geração. Para os ricos ajudas e para o povinho valentes surras: ‘investe’ mas é no Euromilhões e na raspadinha que se tudo o mais falhar vale-nos a Cristina (de manhã), a Sô Dona Fátima (à tarde) e o professor Marcelo (domingo à noite).

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Tiago Matos Silva é antropólogo, doutorando e investigador

O avô passava fome: ó filho é a crise! O pai ia descalço para o fabrico: o raça do diabo da crise! O filho não tem emprego a não ser a falsos recibos verdes: ó porra da crise! A ver se a puta da crise chega ao tempo da neta, para a garota não perder a oportunidade de participar nesta velha tradição.

Não fosse a crise como é que se fazia dinheiro do nada? Como é que mantínhamos os salários ‘competitivos’ e o desemprego no nível ‘necessário’? A rapaziada na ordem e os gregos no lugar deles, lá em baixo, caladinhos e agradecidos por não lhes privatizarmos as ilhas boas de praia todas e não os entregarmos ao partido nazi (em 67 não fomos tão meigos).

Vá, bolinha baixa que no fundo no fundo a crise é linda. Vá lá, repitam comigo ‘‘guerra é paz! liberdade é escravatura! ignorância é força! obrigado senhor doutor!’’. Deus e os Nossos Senhores nos livrem do dia em que se acabe a crise!

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