Farto do drama, da fominha envergonhada (de pão, de verbo, de razão), da malandragem ufana e televisionada, dos jornais, dos bem-pensantes, dos gregos e dos alemães, do Facebook e do mail, dos envelopes recortáveis das Finanças, das cunhas e dos envios da curricula, dos vizinhos saídos do “Shameless”, das dores de costas, das queixas do gato, das birras da criança, do telefone, do cheiro da máquina-de-lavar a trabalhar, farto deles todos por minuto e meio fecho a porta da casa-de-banho do fundo, fecho a porta e abro a enorme janela que dá para os quintais dos vizinhos, meto os cornos de fora.
Empiriquito os joelhos na sanita e ensopo-me no silêncio pouco lisboeta, o céu muito azul com umas farripas brancas aqui umas farripas brancas ali, a chuvinha fina primaveril que não pinga (tic tac toc diria o mestre Aquilino) por igual em toda a extensão do olhar. Com a luz do sol meio embaçada as variações das cores saltam melhor aos meus olhos (um estigmático e outro míope), o verde dos cabeços de Monsanto que espreitam por cima dos telhados são na verdade muitos verdes diferentes: o verde vivaz dos pinheiros, o seco dos carvalhos, o manchado a vermelho dos ulmeiros.
Mesmo os telhados da vizinhança matizam-se em muitas cores-de-tijolo, mais claras e mais escuras, da cor-de-vaso-húmido ao quase-preto, a delatar a antiguidade do prédio, a idade da última renovação, a malandrice do empreiteiro que contratado para substituir a totalidade, só remendou meia-dúzia de telhas aqui, meia-dúzia de telhas ali. Encho os olhos com o sossego dos quintais recortados pelos muretes que separam a parte de trás deste prédio da parte de trás daquele.
Um empedrado a desperdício de mármore e cimento, outro calcetado à antiga com cubos de calcário, outro todo ocupado por uma casa de trás onde se grelha o peixe ou dorme o filho tonto e pouco apresentável, a inevitável horta destes lisboetas tão pouco cosmopolitas, destes lisboetas que ainda sabem plantar e cultivar altas couves galegas e tronchudas nacionais, cenouras e alfaces, cebolas e extraordinárias flores encarnadas de longos estames negros que eu só julgava possíveis na Madeira ou mais abaixo, e finalmente o quintal abandonado pelo condomínio, o mais verde de todos, o com os verdes todos, com o matagal perdido e hipnotizante, donde cresce um limoeiro carregado, uma amendoeira florida e uma nespereira caótica de emaranhada.
É sempre este pátio escuro e descuidado, feio e sem uso nem emprego, fonte de altos jarros brancos e amarelos e espessas nuvens de insectos no estio e de gataria calaceira o ano todo, gataria em todas as matizes de todas as cores misturadas, sempre gorda e luzidia a melros e pombos azarados, ratos também imagino (uma gaivota perdida vi eu uma vez); é sempre o pátio feio e sem préstimo que os meus olhos sorvem mais sofregamente.
Se calhar é queda minha para o inútil, para o entrópico e o selvagem, se calhar é infantilidade minha não valorizar a eficácia e (como eles dizem agora) a ‘mais-valia’; mas de cima da minha sanita o pátio feio continua a ser o poema no meio dos relatórios de contas. E pode ser que venha quem o domestique em espaço limpo e banal à “Querido mudei a casa”, com uma mesinha para o ‘brunch’ e um guarda-solzinho para proteger dos raiozinhos UV... caramba, até é possível que os meus olhos (tanto o estigmático como o míope) percam a capacidade de lhe ver a beleza, pode ser que aconteça... mas seria uma pena.