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O enredo atingiu o auge em 1922, quando veteranos da Primeira Guerra Mundial voltam a defrontar-se num França-Escócia

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Em Agosto de 1914, vários clubes de râguebi britânicos depararam-se subitamente com equipas quase vazias, ao perderem milhares de jogadores que se alistaram para servir Rei e Pátria na Primeira Guerra Mundial. O London Scottish foi um dos mais afectados, ao ver sair para a linha da frente mais de 200 dos seus praticantes. Quatro anos depois, quando se depuseram as armas, 69 desses homens tinha perdido a vida no campo de batalha. Ao campo de râguebi só quatro regressaram sem mazelas físicas da guerra.

Um desses privilegiados foi o antigo internacional escocês Charles Usher, que fora feito prisioneiro de guerra e sobrevivera para liderar a selecção da Escócia no primeiro Torneio das 5 Nações dos anos 20, contra a França, em Paris. Nessa altura, a paz já reinava há dois anos, mas, quando soou o apito, as memórias da Grande Guerra reapareceram, duras, bilaterais e inevitáveis: três jogadores em campo apresentavam-se sem um olho, na sequência de ferimentos sofridos em combate. Um deles era o escocês Jock Weymuss; outro o francês Marcel Lubin-Lebrère.

O resultado do jogo não foi memorável, mas a história que os adeptos do London Scottish acarinham é a de que foi nessa partida que despontou a longa amizade entre os dois ex-combatentes dos Aliados. O enredo atingiria o auge dois anos depois, em 1922, quando esses veteranos de guerra voltam a defrontar-se num França-Escócia e, antes de o jogo começar, combinam marcar-se um ao outro nos alinhamentos.

É aí que as feridas antigas insistem em voltar a doer. Nos alinhamentos ao longo da linha lateral, a marcação dos atletas desempenhou-se sem percalços, com cada um a revelar-se perfeitamente capaz de usar o glóbulo ocular que ainda preservava para seguir tanto a bola como o adversário.

O drama surgiu quando o jogo mudou para o outro lado do campo, porque, como Wemyss e Lubin-Lebrére tinham perdido olhos diferentes, ao inverterem posições deixaram de abarcar o adversário no seu campo de visão. Sucederam-se choques imprevistos, encontrões, cotoveladas, desequilíbrios.

O árbitro em funções era Dreadnought Harrison, então recentemente distinguido pelo seu serviço militar, e, ao aperceber-se do desarranjo entre Wemyss e Lubin-Lebrère, abordou o assunto com Usher, com quem tinha um relacionamento próximo. "Deixa-os estar", terá respondido o capitão dos escoceses. "É um acordo privado entre os dois – ambos são meios-cegos", explicou.

Harrison acedeu e deixou os heróis de guerra continuarem a digladiar-se com superior esforço nessa tarde de Janeiro. Reza a história que a disputa entre os dois foi um microcosmos do jogo global, que terminou com a merecida justiça de um empate a três pontos.

A partir do livro "Rugby Strangest Matches", de John Griffiths

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