Ainda não temos 40 anos e os meus amigos estão uma cambada de jarretas. Velhas carcaças encanecidas, eles barrigudos e elas respeitáveis. A Inês dizia sempre ao mínimo sinal de fraqueza que ‘‘já não somos os velhos bandidos!’’, parece que finalmente tem razão, a patuda.
Encontramo-nos duas vezes por ano (reuniões magnas), para fazer a contabilidade das mudanças de telemóvel e dos divórcios, para entreolhar as crias uns dos outros com comentários parvos: ‘‘Dá um beijinho ao tio Tiago’’, e o puto a olhar para mim com o ar de ‘‘quem é este cromo?’’. Tiramos sempre fotografias de grupo, tipo equipa da bola mas com todo o mundo sentado, de seis máquinas diferentes (o que leva tempo e garante pelo menos quatro de fotógrafos a correr para o grupo) porque toda a gente trouxe máquina (menos o Hugo que tem um telemóvel que faz todos os truques, todos menos equilibrar-se de lado num copo), porque toda a gente sabe que o momento é precioso, precioso e frágil como a memória.
Os homens comparam barrigas, cãs e o recuo capilar; as damas cochicham venenosas as desventuras de terceiras de quem não gostam vai para mais de vinte anos, os miúdos chateiam-se homericamente. Come-se, come-se, come-se (porque somos portugueses e sabemos forrar o estômago para o que aí vem), começa-se a beber (tinto porque estamos a comer), eu tomo conta da música (evito rarezas para não ouvir inanidades), bebe-se mais, alguém liga a televisão para os putos se chatearem menos; queixamo-nos do governo (seja ele qual for), da lenta destruição do ensino em Portugal, a malta das autarquias compara misérias, confirmamos que toda a gente topou aquele inútil lá da faculdade que já se senta no parlamento, damos a volta ao que cada um anda a ler, trocamos as mais recentes descobertas musicais (porque somos velhos mas não estamos mortos), alguém pergunta pelo gelo e o bar abre-se (temos todos bares inenarráveis, o meu até tem menu).
Fuma-se à janela, a conversa descai inocente para as tardes na esplanada da faculdade (relembramos os professores mais nulos) e escorrega inexoravelmente para as noites do Bairro Alto. As mães mais vividas verificam que as crias não estão a ouvir, garantido: entretidas que estão a desmontar um telemóvel. Começam as histórias do sexo, drogas e rock n’ rol: as moças bebem dulcíssimos licores coloridos, os selectos carregam no scotch, eu na vodka, o Hugo no que houver (que tem boa boca), a Marta pergunta por uma garrafa de gin que bebemos há mais de 10 anos, a aguardente da minha avó vem à baila.
Os donos da casa desenterram um álbum ou uma caixa cheia de fotografias de antanho, debate-se quem estava mais estragado nessa noite, quem fumou o quê, quem dormiu com quem; momento de silêncio: a progenitura continua distraída enquanto nos apercebemos que mais tarde ou mais cedo vamos ter de explicar aos pigmeus porque é que o tio aparece tão agarrado à mãe em tantas fotos... ‘‘Mas não há cerveja a sério nesta casa??!’’ exclama o João com a cabeça enfiada no frigorífico.
Gozamos um bocado com o mais desprezível dos nossos antigos colegas, mas só por nostalgia que há décadas que ele não chateia ninguém. Alguém começa a falar de desenhos animados do tempo da Maria Cachucha (normalmente a Xana), eu gozo e chamo-lhes velhotes do vinho do porto, um dos putos adormece no chão, um dos pais começa a falar expansivamente e a merecer olhares gordos da respectiva mãe, a minha mulher reenvia-me firme para a janela porque entretanto já estou a fumar no meio da sala.
Separamo-nos descontraídos, reconfirmados na velha bandidagem, prontos para mais seis meses de vida real.