Medo: a grande revelação da paternidade

O que a existência da minha filha me legou imediatamente foi o permanente terror que alguma desgraça lhe aconteça, e eu tenho os cabelos brancos para o provar

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Phil Noble/Reuters

Claro que já sabia o que era o medo, por mais lisboeta branco e burguês que seja já conhecia o bicho. Medos específicos: medo de levar porrada (à porta do liceu porque o meu amigo Rato se meteu com a miúda dum turra da Musgueira), medo de me magoar (a amiga da Sofia a galgar com o carro um dos recortes da Praça de Espanha), medo pelos outros (a minha irmã a escorregar por um valado em Mafra, a Marta com uma faca apontada à barriga, a minha mãe a entrar para o bloco operatório, o meu pai a desmaiar-me num corredor, a sombra da minha avó a agarrar-se à vida numa cama em Abrantes), até medo de morrer (os motores silenciados do avião no Peru, a acompanhar a lenta progressão das tripas a encostarem-se-me aos pulmões).

Tenho, como acho que toda a gente, medos pessoais, mais simbólicos que quotidianos (os ratos para a minha mulher, as cobras para a minha irmã), princípios fóbicos com que no fundo não temos de lidar no dia-a-dia e que no meu caso (papagaios e avestruzes) não me condicionam para além dum estudo mais atento do mapa do Jardim Zoológico, de maneira a evitar a frágil cerca que separa o meu precioso corpo dos ditos, enormes e horrendos, pássaros.

Mas tudo isto é brinquedo quando comparado com o medo que vem com um filho. Essa foi, para mim, a grande revelação da paternidade; mais do que o “amor incondicional” e o “ver-me a mim nela” e essas retóricas da paternidade moderna, o que a existência da minha filha me legou imediatamente foi o permanente terror que alguma desgraça lhe aconteça, e eu tenho os cabelos brancos para o provar.

Medo gera agressão

Notem que eu não posso estar mais longe do pai ansioso e ultra-protector, eu sou mais o tipo que vê a criança dar uma cabeçada na parede e grita “Cuidado com a parede! A casa é arrendada!!”, dou “beijinhos dói-dói” mas não me deixo comover com birras da treta e continuo a achar que a criança não precisa de uma armadura para andar de trotineta, e no entanto... no entanto prefiro de longe ir buscá-la a ir deixá-la ao infantário, não só porque posso ficar na cama, mas porque há uma qualquer parte funda do meu cérebro que se alivia quando a vê inteira ao fim da tarde, a mesma parte funda que de manhã, faz olhares responsabilizadores às educadoras, olhares que dizem secretamente “devolve-ma como eu ta dei ou pego fogo a isto tudo”.

Porque o crónico problema do medo é esse: o medo gera agressão (Konrad Lorenz explica). Eu sou um tipo cordato e civilizado, que vota e paga impostos, mais gentil do que simpático (é verdade) mas que lava as patas da frente antes de comer e nunca cospe na sombra dos outros, a maior parte do tempo até sou contra a pena de morte (salvo tiranicídios); mas a noção, por mais abstracta e hipotética, de pulhices feitas aos meus (especialmente à garota) reverte-me automaticamente a um cro-magnon rangedor de dentes e de moca na mão (no meu caso uma perna de mesa do AKI em que escrevi “seja bem-vindo quem vier por bem” e que descansa sossegada por detrás da cama).

Adquiri também uma sensibilidade aguda para o tipo de horror que envolve adultos a martirizar miúdos: ao tempo, segui a história dos Fritzls, enojado mas atento; hoje em dia as “gordas” do “Correio da Manhã” bastam para me ouvirem ecoar os antepassados beirões nuns sinceros “Era botá-los ao lume!!” e raramente chego a ler os artigos. Em resumo, a paternidade fez-me muitas coisas: sou hoje mais responsável, agradecido aos meus próprios pais, maravilhado pela coragem das mães e pais solteiros, fascinado pela especificidade de cada uma das crianças largadas ao mundo, mas quanto a ter feito de mim um melhor humano, só se for no sentido estritamente mamífero da palavra.

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