Diário de um cínico

Bófia à porta de casa para os vizinhos saberem com quem lidam, “chauffer” do ministério para levar os meninos ao Planalto ou ao Colégio Moderno, brigas velhas acertadas pelo fisco ou pelos amigos da televisão e dos jornais

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401(K) 2013/Flickr

Acabar o liceu já na “jota”, uma das duas, não interessa qual. Entrar para a faculdade, uma qualquer que é outra indiferença, preciso é prefixar o nome com um “Dr.” ou um “Eng.” ou um “Arq.” que a populaça continua com esse desejo de submissão. Enfiar-me nem que seja a ferros na Associação de Estudantes e dar nas vistas, tribunar sensatamente nas RGAs, invectivar (com respeitinho) os poderes da academia, criar fama de progressista e incorruptível, e ao mesmo tempo descobrir as eminências pardas do partido, encontrar o barão que é o mais barão dos barões, o “king-maker” como dizem os anglos, trabalhá-lo, que isto sem padrinhos não se chega a nada.

Entretanto acabar o curso com o mínimo de cambalachos possível, arranjar uns “tóinos” para me fazerem os trabalhos, mostrar a cara de vez em quando nas aulas, dizer a cada um dos professores que as aulas dele me marcaram, me deram uma nova perspectiva, “coiso” e tal, os gajos adoram isso. E começar a alinhar uma miúda independentemente das minhas tendências, uma com um pai com contactos no partido ou pelo menos com dinheiro para as campanhas.

Manter os “tóinos” por perto, vão dar jeito mais tarde quando escreverem nos jornais, derem aulas e estiverem nos sindicatos, os frustrados. Arranjar maneira de ser convidado para a Maçonaria ou a Opus Dei (conforme a “jota”), ou melhor ainda para as duas. Ir à loja ou ao terço, dizer que sim aos tolinhos que acreditam mesmo em sabe-se lá o quê e aproveitar o tempo para fazer amigos que realmente interessem; concordar sempre com o maior tubarão na sala, assim não dá para errar.

Casar com a miúda, de fraque e convidando quem pesa, em havendo fundos com revista do social que é investimento que vale a pena; fazer-lhe logo dois ou três putos de rajada que tudo se cria, depois disso dar-lhe soltura e cartão dourado que só vai ser precisa para as entradas e saídas dos congressos. E descolar uma posição no partido, mesmo que o dinheiro pareça ordenado de polícia, ter paciência, fazer amigos nas bases, concordar sempre com os dramas das autarquias, engraxar os poderes internos do partido, as famílias de sempre, a santa madre igreja, a bola, o dinheiro.

Anuir, simpatizar, compreender, aprovar, permitir, partilhar, perfilhar, contemporizar, ceder, conceder, consentir, capitular, adaptar, harmonizar, negociar, combinar, pactuar, arranjar, conciliar, ajeitar, acomodar, harmonizar, adoptar, alinhar, atender, satisfazer, agradar, abraçar, suportar, servir sempre sempre sempre, aguentar tudo, aguentar sempre. Até ao aparelho de estado, até à sub-sub-sub-secretaria, até à secretaria de estado, até ao glorioso dia de telefonar para casa e exclamar triunfante “Pai, já sou ministro!”... e aí é que vai ser!

Bófia à porta de casa para os vizinhos saberem com quem lidam, “chauffer” do ministério para levar os meninos ao Planalto ou ao Colégio Moderno, brigas velhas acertadas pelo fisco ou pelos amigos da televisão e dos jornais... e começar a pensar na reforma. Contratos aos amigos para começar a rechear as contitas nas Bahamas e no Liechtenstein (que a Suíça e as Cayman estão tããããão vistas!), massajar o dinheiro a sério para ver se me inventam uns lugares de coisa nenhuma nuns conselhos de administração aqui e ali, não vá cair alguma ponte. Não confiar nem na mulher nem na miúda, arranjar desde o início um escritório de advogados para os dinheiros (um dos a sério, dos intocáveis). E finalmente, finalmente descobrir o que quer dizer cínico e rir-me do Diógenes e do seu barril.

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