A minha rua sem calçada

Eu continuo à janela, a ver as biritas de cinza a cair em direcção ao passeio escuro e feio, e a imaginar como aqui a minha rua ficava mais bonita com uma desconfortável e perigosa calçada de calcário branco

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...storrao.../Flickr

Leio sobre uns macabeus que querem acabar com a calçada portuguesa em Lisboa e vou à janela, olhar para os seguros, práticos e medonhos passeios de alcatrão fundido de Paris. O algarvio do prédio em frente pergunta-me se “ça va?!” enquanto rega os vasos pendurados da cercadura das janelas, flores encarnadas de eu que já soube o nome (a Paula disse-me), nunca sei o nome das flores, as árvores de fruto conheço mesmo sem a fruta, mas para flores sou um calhau com olhos. Ao lado o casal da Sardenha (cá em casa chamamos-lhe a sardinha e o sardão, porque ela é pequena e elegante como uma italiana e ele grande, gordo e com uma cabeça com um feitio curioso) dançaricam na sua cozinha diminuta; ele, cozinheiro profissional, ainda tem paciência para o jantar lá de casa, que cozinha sem espaço, sem bancadas e sem sujeira, comigo do lado de cá maravilhado com a segurança e exactidão com que aquelas mãos sapudas se movem entre facas e tachos.

Por cima dos sardos dança-se, os estudantes que partilham o apartamento passaram a tarde toda a olhar para o videojogo e têm o bucho cheio de Coca-cola e o miolo a boiar em tetra-hidrocanabinol; agora meteram um tecno xaroposo e sonolento e dançam como só um branco do norte da europa é capaz; a Bimby da mãe dum deles plange aflita o jantar esquecido e eu rio-me da coordenação corporal que para ali vai.

Dois prédios ao lado o marroquino da pizaria espreita por clientes, desde o 4-0 cumprimenta-me sempre em alemão feito pulha, eu deito-lhe a língua de fora e mando-o torcer pela Argélia que não sei palavrões em árabe. Os argelinos (que com os malianos são a maioria da população cá da rua) têm andado insuportáveis, na noite de domingo em que venceram a Coreia ninguém dormiu em Paris. Por cima da pizaria a Monique e o Virgule vigiam o lusco-fusco da rua, digo-lhes adeus; Virgule, o alaranjado gato trombudo com alguns 10 quilos recolhe imediatamente ao interior, a Monique responde-me a sorrir.

A Monique é um figurão, uma das poucas francesas cá da rua, tão alta como eu mas o dobro de largo, passeia lenta o corpo de segurança de discoteca a exibir um penteado à Simone Signoret das “Diaboliques”. O penteado retocado todas as sextas desde que o marido (falecido há décadas) a envergonhou um dia por vir de rolos postos à rua. Muito mais velha do que parece, adora contar histórias dos “boches”, como a do pai dela trazer do campo um borrego vivo no cesto da bicicleta, borrego prontamente morto, esfolado, limpo e assado aqui na rua para comemorar a libertação de Paris e a chegada “des américains”.

Os “índios” da costura fecham a loja (os portugueses de Paris imitam os franceses na confusão linguística entre ameríndios e indianos e chamam “índios” a toda a gente, estes até acho que são paquistaneses), o patrão vem grosso desde a hora de almoço e continua a vociferar e o alfaiate principal, um tipo grande e soturno que não esconde o desprezo pelo velho, diz-lhe distraidamente que sim com a cabeça enquanto tranca a porta e diz até amanhãs à Lurdes, a nossa “gardienne”, que espreita, telemóvel encostado à orelha, ambos extremos da rua. Pelo ar o mais novo anda na gandaia outra vez e esqueceu-se da hora de jantar.

Eu continuo à janela, a ver as biritas de cinza a cair vagarosas em direcção ao passeio escuro e feio, e a imaginar como aqui a minha rua ficava mais bonita com uma desconfortável e perigosa calçada de calcário branco.

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