O dia de hoje, como efeméride que é, tem uma função infeliz: lembrar-nos daquilo que alguns preferiam esquecer. Neste caso, de que vivemos numa sociedade em que os homens têm uma quantidade desproporcional de poder sobre as mulheres. Que os homens exercem esse poder através de violência física, psicológica, económica e social. Que isso se traduz em mulheres maltratadas, em mulheres assassinadas. Que a expressão “cultura patriarcal” se escreve com sangue e se pontua com nódoas negras.
Esta crónica não vai dar números, não vai dar estatísticas. Essas estão disponíveis noutros lados. O que esta crónica pretende, enquanto crónica escrita por um bio-homem cisgénero, é chamar a atenção para as atitudes que muitos outros homens têm face a este assunto – ignorar, desconsiderar, desprezar ou, imagine-se, sentirem-se ofendidos.
Também há homens a serem alvo de violência doméstica, à mão de mulheres? Sim. Mas ainda assim, há uma desproporcionalidade fundamental – institucional – na forma como a violência se exerce sobre homens e sobre mulheres, e na maneira como isso tem impacto no quotidiano da vida dessas mulheres.
A violência de género tem o seu expoente máximo nas dezenas de mulheres que morrem anualmente (em Portugal, porque noutros países o número é bem maior) à mão de companheiros e outras pessoas supostamente de confiança. Mas tem uma presença concreta no dia-a-dia dos piropos, da discriminação salarial, na sensação de incerteza e de insegurança que vem de sair de casa (mas que não passa, para muitas destas mulheres, por estar em casa).
Feminismo vs machismo
E, apesar de estas experiências serem completamente estranhas para a esmagadora maioria dos homens, a maior parte destes prefere fazer de conta que a igualdade entre géneros existe, que “feminismo” é palavra feia (ou que é o equivalente ao machismo, o que de si revela a incapacidade sequer de agarrar num dicionário), ou que temos é que nos preocupar com a violência contra os homens (violência essa normalmente praticada por outros homens!).
"J'accuse": este acto de desconsideração, este acto de privilégio machista e patriarcal (o privilégio de poder dizer o que conta realmente como problema ou não; o privilégio de se achar que se pode falar na vez das outras pessoas e por elas, sem as ouvir) faz parte do ciclo de violência. As mulheres precisam de lutar contra a violência sobre elas praticada e, em cima disso, de lutar para tornar visível que essa violência é real – nem a contagem de corpos no cemitério parece chegar para afiançar isso.
Eu faço parte dessa cultura de privilégio. Eu, por ter nascido com um corpo considerado masculino e ter sido educado como “homem”, usufruo de um sem-fim de vantagens que nada têm que ver com mérito próprio. E, no entanto, vivo rodeado de mulheres que já sobreviveram a violência física, sexual, psicológica e outros tipos de abuso. Já ouvi as estórias delas, já as vi chorar enquanto as contavam e já chorei com elas. No decorrer disso, percebi que nem toda a minha possível empatia chega perto da mínima compreensão do que é viver com isso, do que é viver isso na pele.
É extremamente provável que a maioria dos homens que ler isto conheça alguma mulher que já foi alvo de violência de género – tão provável como essa mesma maioria dizer que a violência de género não existe, ou é invenção das “feministas histéricas”. A falta de empatia e arrogância por detrás desta atitude deixam-me envergonhado, confesso – chego a sentir-me mal por aquilo que implica ser-se “homem” nesta sociedade.
Se és homem, e se te achas forte e corajoso, tenho um desafio para ti: pensa sobre que masculinidade é a tua, o que é “ser homem” para ti, e ousa fazer uma masculinidade diferente, ousa questionar o teu privilégio e a violência que ele traz para as outras pessoas, ousa levantar a voz, mesmo quando isso não representa ganho próprio, em memória e respeito de todas as mulheres que conheces e que já sofreram (e irão sofrer) às mãos de outros homens.