Um amor anémico

Não sei de onde saiu a ideia de que o amor está a morrer. O Google Ngram Viewer diz-nos que, pelo menos em inglês, cada vez o amor (vá, o “love”) ocupa mais espaço naquilo que se escreve

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Reuters

Sempre que alguém vos disser que alguma coisa (o Amor, a Família, ou até A Crise) morreu, desconfiem. Sempre que alguém vos disser que essa mesma coisa afinal não morreu, desconfiem duplamente. Tanto um caso como o outro são formas de o locutor estabelecer um determinado ponto de privilégio (maior capacidade interpretativa, maior conhecimento, seja o que for), a partir do qual consegue ver “a Verdade” ou “As Coisas Como Elas Realmente São”.

Por outras palavras, justamente aquilo que aconteceu numa crónica recente do P3. Anuncia-se que alguém desconfia da morte do Amor, para logo se contra-diagnosticar a sua, afinal, boa saúde e, ao mesmo tempo a sua potencial maleita actual — uma confusão generalizada entre a utopia e a vida real, um esquecimento generalizado de que o amor “dá trabalho”.

O trabalho que dá, ou dará, ninguém sabe, porque a cronista prefere dedicar um parágrafo a decorar letras de músicas e deixar queimar torradas, ou garantir-nos que “o amor é prosa, é narrativa, é poesia” — mas que dá trabalho, demora tempo.

Não sei de onde saiu a ideia de que o amor está a morrer. O Google Ngram Viewer diz-nos que, pelo menos em inglês, cada vez o amor (vá, o “love”) ocupa mais espaço naquilo que se escreve. Mas vou aproveitar o embalo e armar-me eu em médico, para dizer que este amor-utopia-da-vida-real sofre de anemia.

Porque, por alguma razão, “amor” passou a significar “amor romântico”, e “amor romântico” passou a significar “amor entre apenas duas pessoas, preferencialmente para sempre”. Por falta de oxigénio — daí a anemia — ficaram pelo caminho todos os outros tipos de amor (os tipos da Grécia Antiga tinham quatro), ficaram as pessoas poliamorosas, ficaram as pessoas a-românticas e/ou assexuais…

Tal como ficaram as pessoas que investem o “trabalho” de serem vítimas de violência doméstica para chegar ao “majestoso vivemos felizes para sempre, SIM”; ou as pessoas que, escolhendo viver sozinhas e /ou estar ‘sozinhas’ (já repararam no quão perniciosa é esta linguagem, em que se não estamos numa relação romântica, estamos sozinhos?!), têm de enfrentar por isso vários tipos de discriminação.

O Amor está vivo? Não sei. Mas sei que os amores — os sentimentos que temos, e que operam dentro de condicionantes sócio-culturais que mudam ao longo do tempo e dos espaços que ocupamos — estão em constante evolução, e que não é por usarmos a mesma palavra que estamos, de facto, a dizer a mesma coisa.

Portanto, antes de retirarmos a certidão de óbito ao amor (desconfio que foi falsificada), talvez tenhamos é que ir buscar o bisturi para desmontar as utopias que guiam a nossa vida, e a sua potencial toxicidade, o seu potencial opressivo, o seu potencial enquanto apagadoras da legitimidade e visibilidade de formas de viver/ser/sentir vistas como “diferentes”. Ou, como disse Judith Butler, ao invés de oferecermos uma resposta sobre o que é o amor, talvez lhe possamos tratar a anemia através de um questionar crítico constante sobre ele e da valorização do quanto não sabemos nem podemos saber.

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