Esta ideia de uma peça de vestuário (ou outro objecto) que “proteja as mulheres” da violação não é particularmente nova nem particularmente avançada — excepto, talvez, nas componentes mais tecnológicas. No campo da ficção, por exemplo, lembro-me de ler no "Snow Crash" de Neal Stephenson a existência de um dispositivo chamado dentata (do latim “vagina dentata”, vagina com dentes) que incapacitava um agressor masculino assim que ele penetrasse a mulher.
Ora, o falhanço espectacular aqui — e frequentemente repetido ao longo da História, com ditames variados sobre a decência de vestuário — está em, mais uma vez, deslocar o ónus da situação sobre as pessoas mais vitimizadas. Primeiro, por querer estruturar o seu comportamento (“Se não queres ser violada tens que vestir isto. Não tinhas isto vestido? Então se calhar a culpa também é tua.”); segundo, por querer estruturar a atenção e recursos para longe dos agressores (Imagine-se o quão hilariante seria se a inexistência de um dispositivo de castidade num homem desse azo a suspeitas de que ele é violador; mas a suposição contrária já é, de alguma forma, validada contra as mulheres). Não vou repetir os argumentos da presidente da UMAR, que subscrevo, para completar o meu raciocínio.
No fundo, tudo se poderia resumir a isto: para não serem violadas, as mulheres têm que fazer A, B, C, D... (É só ignorar que as mulheres que fazem tudo isso são também alvo de violação!). Os homens, ao que parece, não têm nada a ver com a situação, nem têm que fazer nada. Pode-se gastar dinheiro, mas é a coarctar e determinar o que uma mulher pode/deve usar.
Parece-vos que algo aqui está estranho? A mim também. Não sou apologista de uma postura meramente reactiva — se estamos numa cultura machista e patriarcal, que tantas vezes trata os corpos de não-homens como coisas inferiores das quais se pode dispor livremente, então é sobre essa cultura (da violação). Tal como no caso da SlutWalk ou como no caso dos piropos, a solução tem também de ser proactiva. Ensinar (os homens) a respeitar, ensinar (os homens) a ouvir e calar durante um bocado, ensinar o valor do consentimento — ensinar que, nas suas várias cambiantes, “Não é Não!” e que, conexamente, “Sim é Sim!” quando esse “Sim” surge dentro de um ambiente de respeito, reflexividade e comunicação.
Isso passa também por lembrar que “violação” não é apenas “penetração vaginal ou anal”, por lembrar que boa parte das violações são feitas por pessoas que conhecem as vítimas, e por lembrar que assistimos diariamente a violações em micro-escala quando olhamos para situações de assédio, de piropos não-requisitados, de olhares objectificantes.
Até ao dia em que as pessoas concordem (ou pelo menos a maioria delas!) que um “Não” nunca pode ser traduzido por “Aqui está um desafio para ver se consegues chegar ao Sim”. Porque o consentimento não é uma ideia óbvia, simples e fácil de colocar em prática, dada a quantidade de (maus) reflexos condicionados que temos, e sim uma componente crítica e complexa das relações inter-pessoais, que é frequentemente atropelada (“Não queres? Vá lá, é só irmos beber um copo! Mesmo? Oh... mas assim eu fico triste. Vem lá, vá... Ah, dizes que não mas bem se vê que até tens vontade de ir dar um pezinho de dança... Não?... Mas tu danças tão bem!, vem lá!...” — repetir durante meia hora) sem sequer nos darmos conta ou, como no caso dos piropos, descartada como histeria quando é apontada.
São estes os vários uniformes da cultura da violação: o uniforme da roupa, sim; mas também o da 'brincadeira', o do 'jogo', o do 'dizes-não-mas-os-olhos-dizem-sim'... E, como afirma uma famosa frase muito usada nas Slutwalks, “Não digam às mulheres o que vestir, digam aos homens para não violar”.