Passei os últimos dias em trânsito. Atravessei quase um continente de avião e, dias mais tarde, percorri meio país de autocarro. Diz o Alain de Botton, e com toda a razão do seu lado, que, “para o melhor e para o pior, em lugares diferentes somos pessoas diferentes”. E, digo-o eu (sem a sobranceria de me equiparar a tal autoridade), viajamos tão-só por causa disto – para sermos outrém.
Já para começar, quando viajamos, estamos desde logo a desafiar a morte. Dizemos à lei de Murphy para se ir lixar. Com ph, de “farmácia” ou “farófia”. Mais que isso: tamanho desafio faz-nos transpor uma barreira que nos leva a outra vida. Mudamos de pele, como as cobras (mas em bom). Vestimos uma fatiota que pertence a um alter-ego inventado no momento e ali estamos, nós enquanto outros.
Onde estou, já na fase final da minha jorna de viagens, os erros ortográficos (só para dar um exemplo bacoco mas elucidativo) quase possuem um certo encanto. Num ambiente citadino, ou pelo menos que nos seja mais familiar, estes pontapés no dialecto da nossa terra seriam impiedosamente ridicularizados. Noutras bandas, toleram-se outros modos, mais brutos e bruscos, e relativizam-se vidas que, lá no sítio donde viemos, morreriam de tanto vilipêndio.
As viagens mudam-nos os paradigmas. Transformam-nos os hábitos e obrigam-nos a adaptar a vida ao ambiente circundante. Aqui, sou o que não seria em casa, sem a mais pálida dúvida.
Em casa não escreveria à antiga, a caneta azul num caderno preto de linhas. Aqui escrevo. Em casa não teria uma floresta inteira a olhar para mim. Aqui tenho. Em casa, no lugar deste saboroso marulhar das águas do rio que serpenteia divertidamente as rochas ali em baixo, no fundo deste vale, ouviria apenas a música dos Trivium ou dos Biffy Clyro ser atrapalhada pelo matraquear do teclado de computador.
E a verdade é que, quanto maior a distância, mais estranhos a nós mesmos nos tornamos. Talvez por isso um passeio no estrangeiro nos deixe em eternas comparações entre a pessoa que somos na verdade e esta que aqui anda disfarçada. Gostamos tanto do que nos é pouco familiar porque há uma pré-disposição para a surpresa e o inesperado. Na vida quotidiana, ao invés, odiamos surpresas. O que é estranho é recusado, causa repulsa. Tira-nos do sério e atira-nos para o canto mais recôndito da nossa concha.
Por isto mesmo, sou apologista das viagens, por serem, como já disse antes, uma leitura em contra-relógio. Aprendemos e colocamo-nos em perspectiva, rebentam-nos com os preconceitos tolos. Sem quaisquer reservas porque, no fundo, somos outros quando estamos noutro lugar. Digo eu, que nem acho particular piada a viajar. Mas que é bom, lá isso é.