São os dois ateus. "Por isso não acreditamos que isto é Deus a tentar a nossa relação". Acreditam que é "apenas o futebol com as suas artes maquiavélicas" a conseguir que um FC Porto-Benfica à penúltima jornada seja decisivo. Catarina Pereira a imaginar que o Benfica pode ser campeão no Dragão, "que é a pior coisa do mundo". E Manuel Neves perseguido por um pesadelo: "O Benfica ainda pode perder este campeonato".
C. e M. são os autores do blogue "Lá em casa mando eu". Partilham amigos e famílias. Partilham almoços e jantares. Partilham livros e discos. Partilham viagens e segredos. Partilham uma casa e uma vida. Partilham nomes de futuros filhos (Jorge Nuno Pedroto Pereira Neves ou Eusébio da Silva Ferreira Pereira Neves?). Só não partilham o clube. Ela é portista. Ele é benfiquista. Aparentemente — só aparentemente — são pessoas normais. "Às vezes não parecemos pessoas saudáveis. E até somos um casal equilibrado e gostamos os dois muito um do outro. E trabalhamos. Até temos os dois emprego, algo raro em Portugal. Queixamo-nos do Gaspar... nós falamos de outras coisas... nos intervalos", resumiu M. em conversa com o P3.
"Lá em casa mando eu" é uma "revisão histórica", um "desabafo" e um "exorcismo" na vida de duas pessoas "doentes" pelos seus clubes. Catarina Pereira, 26 anos, jornalista do site TVI 24. Manuel Neves, 29 anos, médico no Hospital de Santa Maria. Diagnóstico: doentes. Muito prazer em conhecê-los.
"Acho que nunca vi o M. tão feliz. Se isto fosse uma história de amor normal, ele estaria assim porque estamos bem, gostamos muito um do outro e vamos casar. Mas enfim, o Benfica está em primeiro, vai à final da Liga Europa e ainda pode ganhar a Taça, por isso não tenho grandes ilusões quanto ao meu lugar no meio disto tudo".
Criaram o blogue porque "falar 24 horas por dia um com o outro" sobre os respectivos clubes não chega. "Nós não deixamos de ser pessoas normais. Gostamos muito das nossas famílias, dos nossos amigos, saímos à noite, vamos jantar fora, trabalhamos, temos responsabilidades, pagamos as contas da luz e da água. Fazemos isso tudo. Mas a grande base de suporte da nossa vida são os nossos clubes. As pessoas que nos conhecem já sabem que em função daquele jogo é que se vai moldar a nossa vida", explica C.
"Simpatizamos com pessoas que sejam doentes. Há um acordo tácito, um código como se fossemos ladrões. É uma patologia. O nosso grau de loucura é mesmo excessivo. A grande loucura é o tempo que nós passamos a pensar nisto e a falar um com outro sobre isto. É absurdo", completa M.
"O M. fica ofendido quando lhe digo isto, mas ele não devia ser do Benfica. Não consigo perceber como é que uma pessoa tão perfeita pode torcer por um clube tão detestável. Eu amo o M. e o M. ama o Benfica. E estar a apenas um ser humano de distância de amar o Benfica envergonha-me. Percebo que, por essa razão, nunca possa vir a ser presidenta do FC Porto, embora o facto de o Pinto da Costa ser imortal também vá contribuir para isso".
C. e M. respeitam-se. Têm memória (principalmente ele), exaltam-se (principalmente ela). São pessimistas e não são isentos ("Nunca na vida, se isso acontecer, internem-me", diz ele). Não se picam antes dos jogos ("Achamos que qualquer coisa que dissermos esta semana pode ser usado contra nós depois de sábado", diz ela) e não se picam no fim ("O Benfica-Estrela ainda não existiu nesta casa. E eu ainda não tive instintos psicopatas contra ninguém. Que fique escrito").
Entre estes doentes "há um acordo tácito". C. percebe o benfiquista: "Somos muito parecidos como adeptos e percebemos perfeitamente o que os outros estão a passar. Faz todo o sentido que ele esteja com aquela cara quando perde". M. ouve a portista: "Discutimos, eu ganho sempre porque a Catarina não tem razão, ela não admite e voltamos à nossa vida. Nós temos tanta consciência daquilo que o outro sofre, sobretudo em alturas de derrotas da equipa do outro, que nem conseguimos massacrar o outro".
Eu e a Catarina odiamos os casais que se beijam para a fotografia, cada um com o seu cachecol. Muitas vezes nos perguntam como é que vivemos um com o outro. Como é possível haver tolerância entre pessoas que, além de gostarem mais dos seus clubes do que de qualquer outra coisa, odeiam o clube do outro. Não sei.
Se na televisão passar um jogo de berlindes entre o Benfica e alguém, M. é "doentiamente pelo Benfica". "E vou dizer que aquele jogador do Benfica é o melhor jogador de berlindes do mundo". Mas nem M. nem C. percebem muito de modalidades. "Não sabemos o que é um erro de formação no voleibol", diz a portista. "Para a equipa de futebol profissional do Benfica ser campeã nacional eu não me importava que o Benfica perdesse nas restantes modalidades. Elas podiam inclusivamente acabar. Isto sem querer parecer muito doente", completa o benfiquista, cujo sonho é "ser reformado e estar sempre no pavilhão da Luz a ver os infantis de andebol a jogar" porque "os grandes, grandes adeptos são os que acompanham as modalidades".
M. trabalharia no Benfica "24 horas por dia a troco de uma sande de fiambre". Chegou a alimentar o sonho de ser médico do clube, mas "seria pouco racional e por isso um péssimo funcionário". C. gostava de ser tudo no FC Porto ("menos presidente") "inclusivamente jogar" ("há jogos em que eu tirava o lugar a um ou outro").
"Acho que somos muito bons adeptos", sublinha Catarina. "E é essa a nossa função".
Trocariam de clube em benefício da relação? M.: "Quando nos conhecemos já sabíamos ao que vínhamos". C.: "Faz parte de nós".