“Jean de Florette” e “Manon das Nascentes”, de Claude Berri (1986)

Um romance e um filme nunca são substituíveis. O valor artístico da obra escrita não determina o da cinematográfica nem é possível representar a escrita com imagens e sons de modo a que essa representação seja aceite universalmente como boa

Poster do filme “Jean de Florette” DR
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Hoje damos um salto no tempo. Deixamos o nosso reduto essencial dos anos 30-50 e vamos a 1986, não para ver um filme, mas dois, ou, melhor, um filme em duas partes, duas longas-metragens interdependentes.

A história é de Marcel Pagnol, escritor, actor, realizador, e começou por ser um argumento de um filme que ele realizou, estreado em 1952, com a sua mulher, Jacqueline Pagnol, no papel principal. Chamou-se “Manon des Sources” (“Manon das Nascentes”). Dez anos depois, retomando e desenvolvendo esta história, Pagnol escreveu o romance “L’Eau des Colines”, em dois volumes: “Jean de Florette” e “Manon des Sources”. Tendo tomado conhecimento do romance, Claude Berri, em parceria com Gérard Brach, transformou-o em argumento cinematográfico e realizou o filme dividido em duas partes, correspondentes aos volumes do romance.

Um romance e um filme, já o sabemos, nunca são substituíveis. O valor artístico da obra escrita não determina o da cinematográfica nem é possível representar a escrita com imagens e sons de modo a que essa representação seja aceite universalmente como boa, fiel, inteira, única. Pelo contrário, qualquer passagem de uma linguagem a outra é sempre uma tradução, uma interpretação, sendo regra que um filme suprime, acrescenta, modifica cenas, personagens, referências (geográficas, históricas, linguísticas, humanas).
Falar do que chegou ao filme (edição francesa Pathé, em três DVD, tratada digitalmente) é falar de três forças fabulosas: a das personagens, a da terra e a do destino.

Algures na Provença, perto da Aubagne natal de Pagnol, quis ele que houvesse a aldeia de Bastides, com figuras dramaticamente importantes, mas nenhuma mais do que os últimos dos Soubeyrans — o velho solteirão César, matreiro, ambicioso, guardião dos potes cheios de moedas de ouro escondidos na propriedade, e o simplório Ugolin, órfão de pai e mãe e protegido de César, a quem trata por “Papet”, pai por empréstimo, e por quem é tratado por “Galinette”. Junta-se-lhes em cena, naquelas serranias penhascosas de duro viver, Jean Cadoret, dito Jean de Florette porque Florette era o nome de sua falecida mãe natural de Bastides. Professor citadino, poeta, sonhador e corcunda, Jean é herdeiro de um terreno que César e Ugolin se preparavam para comprar como ideal para uma plantação de cravos.

O caso evolui, com gravidade, para uma guerra de água, que, ao contrário do que crêem os citadinos, é a mais grave de todas, pois sem água nada há. Apesar dos ditos de César como “já se viu um camponês tornar-se corcunda, mas nunca um corcunda tornar-se camponês”, Jean, socorrendo-se da sua biblioteca de manuais técnicos, começa por dar lições aos camponeses, produzindo legumes gigantescos e em abundância, mas a falta de água, ou, melhor, a sua ocultação intencional, acaba por derrotar a ciência, a resistência, a poesia.

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Aurélio Moreira, jornalista do PÚBLICO, escreve semanalmente a crónica Filmes sem idade

Para nossa sorte e nossa salvação, Claude Berri conseguiu que Yves Montand tomasse conta do papel de César, Daniel Auteuil do de Ugolin e Gérard Depardieu do de Jean de Florette. E essas interpretações, a visão global de Berri, as cores da natureza, a fotografia, até a adaptação de uma passagem de “A Força do Destino”, de Verdi, para tema musical do filme, com solo de harmónica de Toots Thielemans, tudo isso dá o que de admirável “Jean de Florette” tem para dar. E que continua em “Manon das Nascentes”, com Emmanuelle Béart no papel que outrora tinha sido de Jacqueline Pagnol. Mesmo depois desta segunda parte, que prolonga a nossa estadia, não é fácil deixar essa aldeia — onde “destin” se diz “destein” — sem possibilidade de lá regressar. Talvez seja altura para ler o romance de Pagnol.

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Aurélio Moreira, jornalista do PÚBLICO, escreve semanalmente a crónica Filmes sem idade
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