Depois de Mildred Pierce, Eve Harrington. Outra mulher, outro ambiente de paixões, incluindo a nossa pelo filme, se calhar bem. Mais um que merece ser apresentado, levado pela mão a um amigo, talvez mais facilmente a uma amiga, com quem possa falar tal como fala comigo, sempre que o revejo, mais um pouco a cada vez.
Assim são os grandes filmes que se tornam nossos. “All about Eve” – tudo sobre Eva. Uma história de enganos que começam no título, já que não é sobre Eve Harrington, interpretada por Anne Baxter, que ficamos a saber tudo, mas sobre Margo Channing, interpretação maior de Bette Davis, que ficamos a saber tudo o que nos pode interessar.
As surpresas sucedem-se neste filme de palavras e de coragem. Coragem de Bette Davis, ao mostrar-se, aos 42 anos, como nenhuma superestrela se mostra em público, não só sem artifícios nem véus nem filtros nem distâncias, mas, pior do que isso, aceitando ser filmada em situações de crua desmontagem do seu encanto: tirando a peruca, desmaquilhando-se, admitindo a idade real através da personagem (e dizendo-se despida só por tê-lo admitido), tendo ataques de fúria e de sarcasmo.
E também contracenando, mesmo que brevemente, com uma Marilyn Monroe em princípio de carreira, cintilando uma beleza e juventude que podem incomodar, pelo contraste cruel, o espectador leal a Margo (reconfortemo-nos, sempre que possível, na sua frescura radiante em “A Floresta Petrificada”, de 1936).
Mas antes da coragem de Bette Davis, houve a coragem do realizador Joseph L. Mankiewicz em construir um filme apoiado numa actriz quarentona e num argumento que ele próprio tinha escrito baseado na palavra e na dúvida, competição e azedume dos bastidores do teatro.
E, antes deles, a do produtor, Darryl F. Zanuck (nem ele escapa à fúria de Margo), ao sustentar um projecto à primeira vista pouco atraente, certamente demasiado tenso e palavroso, sobre o declínio de uma actriz de meia-idade.
Fasten your seat belts
Felizmente, tornou-se em muito mais do que isso. Tornou-se num dos maiores filmes de Mankiewicz (dois Óscares: de realizador e de argumentista) e de Bette Davis, com os valores acrescentados por George Sanders, no papel de sofisticado (e cínico) crítico de teatro Addison DeWitt, Anne Baxter como a falsa ingénua Eve, Celeste Holm como amiga leal e terra-a-terra e Thelma Ritter como empregada dedicada, e ainda Gary Merrill e Hugh Marlowe.
Mas é preciso passar pelos gestos e expressões dos actores, pela música de Alfred Newman ou pelo guarda-roupa de Edith Head e escutar as palavras que fazem o argumento tão notável, que ora se estendem como cetins, veludos ou bordados, ora se atiram como setas, dardos ou punhais.
Vale a pena ir além de “Fasten your seat belts, it's going to be a bumpy night” e ler mais, ler tudo. Por exemplo, aqui. Tudo água e brasas, como na vida.