A 10 de Outubro próximo, o canal de televisão por cabo Fox Life vai estrear em Portugal a mini-série em cinco episódios "Mildred Pierce", uma adaptação do romance homónimo de James M. Cain ("O Carteiro Toca sempre Duas Vezes", "Pagos a Dobrar") publicado em 1941, nos EUA. Quer pela actriz que terá o papel principal, Kate Winslet, quer pela sua forma de distribuição, a série parece ter público garantido.
Não será assim com a longa-metragem de 1945 que se estreou entre nós a 2 de Dezembro de 1946 com o título "Alma em Suplício", agora apenas disponível em DVD ou em exibições aleatórias em canais de reposição de “filmes antigos”. É, por isso, momento de recordar esse filme.
Como a partir do mesmo material literário é possível construir um grande número de leituras audiovisuais distintas, já que todos os intervenientes são factores de alteração do original por via de reduções, acrescentos, interpretações e representações individuais, é muito interessante observar como, apesar dos limites a que estavam sujeitos os filmes norte-americanos sob o Código Hays (1930-1956), os canais de comunicação com o público eram sucessivamente explorados no sentido de se conseguir uma representação explícita do que se pretendia sem o recurso a imagens ou a comentários tão óbvios como impossíveis de exibir.
Nesse exercício, ganhou-se, nos melhores casos, em novidade expressiva, em qualidade artística, em lições de ser mais eficaz mostrando menos.
Filme negro
"Alma em Suplício", a que não faltam elementos de filme negro, narra, em retrospectiva, a tentativa de resposta a duas grandes interrogações: será possível a uma mulher separada, com duas filhas, alcançar a auto-suficiência financeira em época particularmente dura, quer pela falta de oportunidades, quer pelo preconceito da sua condição? Será possível uma mãe compensar as suas duras privações de infância pela satisfação de manter uma filha num estado de abundância artificial? O espectador acrescentará uma terceira: qual o preço a pagar?
No papel principal, a inexpressividade característica da actriz Joan Crawford ("Johnny Guitar"), que poderia ter comprometido a empatia do público, é incorporada com verosimilhança numa personagem frenética, movida pela ambição, mas demasiado ciente das agruras da sobrevivência, resultando numa das suas melhores interpretações.
A apoiá-la, conta com Jack Carson, Zachary Scott, Ann Blyth e, especialmente, Eve Arden, construindo um daqueles conjuntos importantes para o sucesso de um filme.
Destacam-se ainda a realização de Michael Curtiz ("Casablanca", "Anjos de Cara Negra)", a fotografia de Ernest Haller ("E Tudo o Vento Levou", "Fúria de Viver"), a música de Max Steiner ("Casablanca", "E Tudo o Vento Levou") e a direcção artística de Anton Grot ("Gavião dos Mares", "The Life of Emile Zola"). Espero que sirva de amostra de uma arte que valha a pena descobrir, apreciar e preservar.