O único especial televisivo do cómico Richard Pryor começa com este num barco de escravos; no final da rábula, é condenado para um destino ainda pior — trabalhar para a NBC. Mais tarde, já no final do primeiro episódio da sua série regular, Pryor deseja uma boa noite a todos e afasta-se do ecrã — para entrar numa cela de prisão. Haverá alguma dúvida do que Pryor achava das restrições do formato televisivo da altura?
Em 1977, Pryor, rotineiramente listado entre os melhores cómicos americanos de sempre, teve a oportunidade de gravar primeiro um especial e depois quatro episódios do seu próprio programa, num formato de espectáculo de variedades.
Pryor, acompanhado por uma trupe de talentos que incluia Paul Mooney, Sandra Bernhardt e Robin Williams (antes de ficar insuportável), aproveitou a deixa para fazer algo que espelha de forma caótica o tumulto dos anos 70 e todos os conflitos que o caracterizaram — entre as raças, entre os sexos, entre as ideologias.
Os episódios sofrem de uma espontaneidade por vezes excessiva e seguem o ritmo pausado da televisão da altura. Mas estão cheios de momentos únicos, perfeitamente explosivos para o tempo em que foram feitos: uma mulher, num monólogo sem qualquer conteúdo cómico, fala directamente para a câmara acerca de uma relação lésbica que, entende-se no fim, se passou inteiramente na sua cabeça — um momento poderoso, seguido por Pryor a imitar o cantor Little Richard sem razão aparente. Charlie Hill, um cómico nativo americano, inicia a sua aparição com algo como “vocês não devem estar acostumados a ver um índio a fazer comédia, não é? Bem, deixem que vos diga, quando chegaram também não vos achámos grande piada!”
A franqueza com que o “Richard Pryor Show” abordou todos os tabus da sua era é notável. Mas, para além do lado revolucionário, possui também uma costela sentimental, usufruindo do formato de variedades para criar momentos musicais, de dança ou de poesia. Num, Pryor encarna um soldado que regressa da 2.ª Guerra Mundial para descobrir que o amor da sua vida não esperou por ele; noutro, a poeta Maya Angelou dá um solilóquio dedicado a um homem consumido pelo alcoolismo.
Isso soa lamechas? Soa, e é aí que o “Richard Pryor Show” se torna novamente desafiante. Os momentos que seriam mais chocantes para a altura (Pryor vestido de Idi Amin, um construtor civil que revela ser travesti) não ferem minimamente as sensibilidades de 2012; mas a visão de um coro de crianças multiracial a entoar “Black Man” de Stevie Wonder ataca impiedosamente as nossas defesas irónicas.
“The Richard Pryor Show” permanece um programa tão provocador como quando foi lançado. Na altura, o desafio que colocava ao espectador era o de aceitar as realidades cruas que retratava; hoje em dia, consiste em suspender o nosso cinismo e conseguir apreciar as odes , por vezes desajeitadas, quase sempre datadas, mas sempre sinceras, que o programa faz à beleza da vida.