Ainda concentrado no que apresentei na última crónica, fui perturbado na minha intenção de legitimar a opinião de Christopher Hitchens por dois dos momentos que mais me encantaram em 2011: "The Book of Mormon", espectáculo criado por Trey Parker e Matt Stone ("South Park"), e o álbum "Music Is Better Than Words" de Seth MacFarlane ("Family Guy"). Como é que três dos mais odiados e inconvenientes homens do mundo apresentam uma peça e um disco onde veneram duas das mais importantes instituições artísticas norte americanas: o teatro da Broadway e o American Songbook?!
Das 14 nomeações para os Tony Awards, "The Book of Mormon", a peça que nos canta as aventuras de dois missionários Mormon no Uganda, ganhou nove prémios. Os rapazes que aterrorizaram a América com "South Park" estiveram perto de atingir o recorde de 12 galardões que pertence a "The Producers", do génio e também comediante Mel Brooks. Estes prémios celebram todos os anos uma instituição que está na base de toda a cultura norte-americana: o teatro musical representado na Broadway, em Nova Iorque e, neste caso, uma sua variante, a comédia musical.
O teatro da Broadway empregou génios como os escritores P. G. Woodhouse, Stephen Sondheim ou Truman Capote e compositores como George Gershwin, Cole Porter, Leonard Bernstein ou Noël Coward. Todos eles foram intervenientes directos e dilectos na criação do "The Great American Songbook" — um conjunto de canções que partilham o mesmo código postal, a Rua 28 entre a Broadway e a Quinta Avenida, rebaptizada como Tin Pan Alley, que ainda hoje se cantam e tocam por todo o mundo.
Quando Seth MacFarlane é nomeado para dois Grammy com o seu disco dedicado a esse cancioneiro, com composições de gente como Hoagy Carmichael ou André Previn, em competição com Barbra Streisand ou Tony Bennett (o "The Book of Mormon" também está nomeado para uma categoria), muitos entendem-no como mais uma agressão grave.
Parker, Stone e MacFarlane são atacados por não respeitarem qualquer instituição, credo, raça, tendência ou condição. Mais odiados pelos liberais do que pelos conservadores, atreveram-se agora a invadir, com resultados extraordinários, dois dos seus patrimónios mais sagrados. São também particularmente atacados por praticarem um tipo de humor violento e olfactivamente pouco correcto, envolvendo o uso excessivo da flatulência. Quem não se lembra de Terrance and Phillip em "South Park"? Ou do dueto de Michael Moore e Peter Griffin em "Family Guy"?
Numa lógica muito liberal: “podes gozar com Jesus mas peidar é que não”.
O que poucos sabem é que o peido faz parte da cultura do espectáculo desde o seu nascimento. De Aristófanes a Seneca, dos Flatulistas (peidadores profissionais) do séc. XIX a Peräsmies, a flatulência foi em tempos aceite e entendida como elemento cultural de facto e assim representada e apresentada de várias formas.
Não muito separa Seth MacFarlane, Matt Stone e Trey Park de Roland the Farter, bobo do séc. XII, que além da sua liberdade e de uma aldeia em Suffolk, ganhou o seu lugar na história por apresentar todos os anos a Henrique II de Inglaterra a peça "Unum saltum et siffletum et unum bumbulum": um salto, um assobio e um peido. E um salto, um assobio e um peido são afinal a essência do espectáculo e, principalmente, do humor.