Não é de estranhar que haja tantas representações de sonhos em filmes, já que é difícil distinguir de sonhos muitos dos que mais recordamos. Entre os sonhos célebres estão certamente o de Gregory Peck em “A Casa Encantada” (1945) ou o de Judy Garland em “O Feiticeiro de Oz” (1939), este último a cores, num filme que começa e termina a preto e branco.
“O Retrato de Jennie”, o nosso sonho desta semana, leva esta confusão um pouco mais longe, a ponto de termos dificuldade em saber que parte do que acompanhamos é real ou imaginário. As surpresas começam mesmo antes da história, num inédito intróito (em 1948 era provável que houvesse alguma coisa inédita) que questiona a normalidade do tempo, a impossibilidade de o passado se encontrar com o presente e convidando os espectadores a usarem o coração para vencer algum cepticismo mais teimoso.
Aparentemente, esse convite classificou o filme como romântico, o que se espera que não o prejudique muito na sua relação com os espectadores de agora. “E agora, ‘O Retrato de Jennie’”, diz a voz. E aparece o pintor, Eben Adams, o que há-de pintar o tal retrato, mas que por enquanto cumpre a pena de “uma fome maior do que de comida, de viver num Inverno mental que congelou o seu génio, sem acreditar na vinda de uma Primavera que o libertasse” (e da outra fome também, pois o tempo do filme é 1934, em plena Grande Depressão).
O actor é Joseph Cotten, de “O Terceiro Homem”, de Carol Reed, de “Mentira”, de Alfred Hitchcock, de “O Mundo a Seus Pés”, de Orson Welles, e de tantos outros. Jennie é Jennifer Jones (“A Canção de Bernadette”, “Entre Duas Lágrimas”), de quem também ouviremos falar em futuras crónicas, assim o permita o Orçamento do Estado para 2012.
E depois há Ethel Barrymore (Miss Spinney), a quem Eben Adams diz, à saída, depois de ela lhe ter comprado uma pintura por piedade: “You have beautiful eyes”. Justificando-se perante o seu sócio na galeria de arte dizendo que comprou o quadro para ela, observa este: “É espantoso o que um pequeno galanteio pode fazer...”. E ela, com um brilho no olhar que esquece os seus 68 anos, responde: “O meu primeiro em vinte anos...”.
Ficam também respondidas as nossas dúvidas – se as tínhamos – sobre ser este um filme certo para nós. As outras dúvidas são tiradas pelo realizador, William Dieterle (“Nossa Senhora de Paris”), com os seus jogos de luzes e sombras e os seus inícios de cenas a que sobrepõe a trama de uma tela, em associação com David O. Selznick (“E Tudo o Vento Levou”, “Rebecca”), talvez o mais admirado produtor de Hollywood a seguir a Irving Thalberg nas décadas de 1930-1950, pela inovação e qualidade artística com que marcou as suas produções cinematográficas.
É o caso deste filme “diferente”, em que o preto e branco passa a preto e verde, e depois a preto e sépia, para terminar, a cores de Technicolor, com o retrato de Jennie num museu, apenas num relance, como quem mostra uma intimidade em que a cor é essencial, uma roupa para servir apenas uns olhos e só esses. Que privilégio!