O estranho caso dos concursos de apoio às artes de 2018
Nem na situação com menor disponibilidade entre 2011 e 2015 ocorreu a trapalhada que estamos a viver.
Tive a oportunidade de lidar amiúde com processos concursais nas artes, a nível nacional: de 1986 a 2002, como presidente do Clube de Artes e Ideias; de 2008 a 2010, como diretor-geral das Artes; de 2012 a 2015, como secretário de Estado da Cultura. Em todas essas situações, identifiquei aquilo que chamo elementos constrangedores estruturais:
- disponibilidade financeira inferior às expetativas;
- descontentamento dos agentes culturais não apoiados e de parte dos apoiados.
Estes elementos estão presentes em todo o período da democracia portuguesa, com maior ou menor dimensão. Entretanto, a variação de expetativas do lado dos fruidores da atividade cultural é mais difícil de caracterizar.
Como diretor-geral das Artes, geri, em 2008 e 2009, um dos mais elevados montantes do período democrático para apoios concursais – 21 milhões de euros; como secretário de Estado da Cultura, contei com um dos orçamentos mais baixos – 13 milhões de euros. Bem entendido, o valor disponível em 2012 – parte da redução orçamental do Estado no período de intervenção da troika – provocou maiores dificuldades e descontentamento por parte dos agentes culturais. Dificuldades não desejáveis e descontentamento justificável. Todavia, nem na situação com menor disponibilidade que referi, ocorreu – perdoem-me a expressão – a trapalhada que estamos a viver. É, aliás, lamentável a tentativa do atual secretário de Estado da Cultura de enjeitar responsabilidades do Governo sobre a situação, como fez, nomeadamente, em entrevista dada a 25 de Março ao PÚBLICO. Relembro alguns factos:
- os concursos de apoio às artes no período 2011-2015, apesar de terem tido verbas mais reduzidas, não provocaram os efeitos devastadores, que se estão a verificar, com os novos regulamentos e concursos promovidos pelo atual Governo – se assim não fosse, porque aconteceria, agora e não anteriormente, a reação fortíssima do meio das artes?;
- a nova lei do cinema, que aprovámos, gerou a maior disponibilidade financeira de sempre para a criação artística nas áreas do cinema e audiovisual – 18 milhões de euros em 2015 – e equivalentes nos anos seguintes;
- a lei da cópia privada, que aprovámos, gerou a maior disponibilidade financeira de sempre para as entidades de gestão coletiva de direitos de autor e de direitos dos artistas – mais de 12 milhões de euros em 2017, com a aplicação da lei de 2015;
- aumentámos os benefícios da lei do mecenato cultural; ficou esclarecida a inclusão dos artistas intérpretes nos benefícios fiscais existentes para autores e a existência de isenção de IVA das remunerações devidas como contrapartida do licenciamento do direito de autor e dos direitos conexos;
- mais que duplicámos a área disponível para exposições e reservas do Museu Nacional de Arte Contemporânea (Museu do Chiado);
- o Museu Nacional do Teatro foi transformado em Museu Nacional do Teatro e da Dança;
- atribuímos o estatuto de Museu Nacional ao Museu da Música, decidindo a atribuição de melhores e maiores instalações, no Convento de Mafra.
Estas medidas concretas não são promessas ou intenções sem sequência, do atual Governo, divulgadas na comunicação social, não são roadshows amigáveis junto dos agentes culturais (que importa ouvir, mas ouvir não chega), cartas abertas ou jantares de campanha eleitoral com juras de solidariedade para com as artes.
Entre 2011 e 2015, perante condições muito difíceis, encontrou-se formas não só de defender a permanência do suporte público às artes (apesar das limitações) como de melhorar o dispositivo existente, em contacto com os agentes culturais de todo o país. Por isso, lamento veementemente a forma demagógica, com tentativa de fugir à responsabilidade própria, que se procura fazer passar.
Mas, suponhamos: o período governativo anterior ao atual tinha sido péssimo. O mandato deste Governo serve para se lamuriar do que herdou? Governar não é lamentar, é agir a favor do interesse público, a partir da situação concreta, com os recursos disponíveis, com objetivos de bem comum, capacidade de gerir pessoas e meios, assertividade nas decisões e eficácia nos resultados, a curto, médio e longo prazo. Menos, pode chamar-se muita coisa, governar não é, com certeza.
O que importa agora é resolver o imbróglio criado pelo Governo no suporte público para as artes. Não está em causa só o financiamento. Está em causa o modelo de apoio, a forma como o Estado se articula com o sistema de júris para as artes. Os júris servem para escolher de acordo com critérios – mas o Estado tem, antes e depois das escolhas, de garantir que estas são equilibradas. Esta garantia é dada por normas programáticas estabelecidas previamente e pela avaliação feita da sua adequação ao cumprimento do serviço público, em termos específicos e gerais, antes de homologação de processos concursais.
O Estado não pode ter política de gosto, mas não pode ausentar-se da capacidade de ajuizar de forma isenta e orientada para um sentido de comunidade. O equilíbrio não é fácil, mas para procurar estabelecê-lo é que existem pessoas concretas com responsabilidades concretas, para governar e para administrar.
Deitar dinheiro para cima do problema, como agora se está a fazer, não chega. Essa atitude tem efeitos nocivos a médio e longo prazo – a fuga para a frente é financeiramente sustentável? Com que critérios? Com que efeitos?
Criou-se uma situação com consequências graves – os danos na comunidade artística já são elevados. Haja agora capacidade para concretizar uma solução – com uma modelação adequada, que garanta a diversidade e inclusão das diferentes expressões do meio artístico (desde as estruturas mais estáveis aos jovens criadores), da distribuição pelo território e do resultado junto das populações.
Bem melhor teria sido não ter o Governo criado a perturbação pelo qual estamos a passar. E agora: é preciso fazer novos regulamentos para remodelar regulamentos novos?... Está aberta a caixa de Pandora.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico