Soberanistas e europeístas, a nova frente de combate na Itália e na Europa
Os efeitos das eleições italianas de 4 de Março não podem ser enquadrados no modelo centro-esquerda e centro-direita direita mas reflectem as novas grandes rupturas que atravessam toda a Europa.
Que se passa na Itália? No primeiro plano, está o puzzle partidário saído das eleições de 4 de Março, que exigirá muita imaginação para fazer um governo. No centro desse puzzle estão os dois “extremos” que venceram as eleições mas sem poderem governar sozinhos e sem aliados evidentes: o Movimento 5 Estrelas, de Luigi di Maio, e a Liga, de Matteo Salvini, que arrancou a Berlusconi a liderança do centro-direita. No passado fim-de-semana houve um momento de ilusão em que pareceu iminente um acordo entre eles, mas apenas por dois ou três dias. Se tal coligação não é impossível, é muitíssimo improvável (PÚBLICO de 29 de Março).
Por baixo do plano das negociações partidárias, há uma mudança de terreno muito mais profunda. O resultado das eleições foi visto como um tsunami. Não foi apenas a vitória dos populistas. “O acontecimento mais significativo é o declínio do centro”, explicou no Corriere della Sera o politólogo Angelo Panebianco. É um facto que “torna improvável a estabilização do novo quadro político” e a reconstituição de um sistema bipolar. Para Panebianco, isto abriu um “vazio político, um abismo”. Uma futura estabilização exige que se preencha esse vazio.
Na prática, o quadro bipolar já estava posto em causa pela ascensão dos partidos anti-sistema, o M5S e a Liga. Antes de 4 de Março era patente um instável quadro tripolar: o centro-esquerda, o centro-direita e os anti-sistema.
A nova fractura
É significativo que alguns dos que apostaram num governo M5S-Liga tenham falado também na emergência de um novo bipolarismo. Salvini eliminaria Berlusconi, recuperando os eleitores da Força Itália (FI) e reconstituindo a direita. Di Maio refaria o pólo “progressista”, absorvendo progressivamente as bases do Partido Democrático (PD), dividido e paralisado. Depois, voltariam a combater-se como protagonistas do novo quadro bipolar. “Um bipolarismo anómalo”, na definição do editorialista Antonio Polito, do La Repubblica. É bom entender isto para perceber a recusa de Berlusconi em ir para a oposição e, sobretudo, a resistência do PD a uma aliança com o M5S.
Por outro lado, argumenta no seu blogue o constitucionalista Stefano Ceccanti, deputado do PD, “é evidente que, fora imprevistas e improváveis surpresas, estamos perante um reset global do sistema de partidos. O acordo directo entre o M5S [sobre a eleição dos presidentes das duas câmaras do Parlamento] reestrutura o sistema ao longo da fractura entre soberanistas e europeístas”. Aponta o argumento do politólogo Sergio Fabbrini que sublinhou que a nova fractura chave é entre as forças de abertura e as forças de encerramento, concluindo que, sendo a Itália, ao contrário da Rússia putiniana, uma sociedade aberta, “pode e deve preparar uma alternativa”.
Antes do voto, Fabbrini considerava as eleições de 4 de Março tão importantes como as constituintes de 1948, pois o que estava em jogo não era tanto a substituição de uma maioria por outra, num cenário externo estável, como a colocação da Itália numa Europa em mudança.
Num texto posterior, recusa-se a limitar os efeitos eleitorais à alteração do precedente equilíbrio bipolar, baseado na distinção entre centro-esquerda e centro-direita. “De facto, nestas eleições emergiu a distinção programática entre forças soberanistas e europeístas”. Tanto o Cinco Estrelas como a Liga “sustentam a necessidade de se libertarem dos vínculos europeus para recuperar uma plena independência sobre políticas como a orçamental ou de imigração. (...) Como pode esta divisão ser representada dentro do velho bipolarismo?”
As escolhas da Itália não têm apenas efeito interno mas europeu. “Os eurocépticos tornaram-se soberanistas e não secessionistas. E, sobretudo, já não são uma minoria. Estão no poder em quase todos os países da Europa de Leste, entraram noutros governos e, agora, depois das eleições italianas, têm votos para entrarem no governo de um dos três grandes países fundadores da UE.”
“Está a emergir uma profunda fractura entre países do Norte e do Sul da Europa.” E cresce o bloco nórdico de oposição aos projectos de Merkel e Macron para reformar a zona euro. Ao mesmo tempo, com a política de Donald Trump, muda o sistema internacional. Neste quadro, “como se posicionará o novo governo? A crise italiana é portanto parte de um puzzle maior.”
Por isso, equacionar o problema político italiano em termos de centro-esquerda e centro-direita é “não compreender a profundidade destas três transições que condicionam aquela crise. Ao contrário, é necessário dar forma política à nova fractura.”
M5S muda de pele
A política italiana não é estática e os actores têm reflexos rápidos. Deixo de lado o PD e Berlusconi. Interessa escutar a Liga e o M5S. Salvini moderou o discurso após a campanha eleitoral, passando a um tom moderado e falando também para fora do seu eleitorado. O seu estratega e vice-presidente, Giancarlo Georgetti, antigo conselheiro de Umberto Bossi e deputado desde 1996, esforça-se por dar a Bruxelas a imagem de uma Liga responsável. Nada de exibir eurocepticismo ou amor por Putin.
Os sinais mais interessantes vêm do M5S. Desde 2016 que manifesta a vontade de mudar de pele. Abandonou a “regra de ouro” de não fazer alianças com os partidos tradicionais. Funciona como um partido — e até dotado de uma “disciplina bolchevique”. Os seus quadros depressa aprenderam a fazer “política à italiana”. A democracia directa, via web, permanece um princípio, mas parece agora subordinada à representação. O partido que execrava a democracia representativa faz agora o seu elogio. Roberto Fico (na foto), o novo presidente da Câmara dos Deputados, declarou no discurso de investidura: “Devemos fazer com que os cidadãos se sintam representados nesta câmara, vendo-a como um ponto de referência em que podem depositar a sua confiança.”
Eurocépticos? Disse Di Maio aos seus deputados: “Estamos para ir para o governo, chegou o momento de deixar o grupo dos eurocépticos.” Quer integrar o futuro grupo da República em Marcha, de Macron, no Parlamento Europeu. “A UE é a casa do Movimento 5 Estrelas”. Sair do euro está fora de causa, não é oportuno. É preciso acabar “com a ambiguidade sobre a imigração”. Aguarda-se a prova dos factos.
Há pontos mais obscuros, como o poder do seu “sumo sacerdote”, Daniele Casallegio, ou o papel da plataforma digital Rousseau que coordena todo o movimento. É matéria para outro dia.