O bailinho do eucalipto no caixão do pinheiro
O que é que a quantidade de área ardida por espécie num ano nos diz exactamente?
A divulgação do segundo relatório da Comissão Técnica Independente (CTI), acerca dos incêndios de Outubro de 2017, trouxe-nos muita informação relevante. No entanto, um dos pontos mais destacados, de que a área ardida de pinheiro-bravo foi maior que a de eucalipto, foi levantado como bandeira pelos defensores da ideia de que “todas as espécies ardem igual”. Mas o que é que a quantidade de área ardida por espécie num ano nos diz exactamente?
Diz-nos pouco. O relatório da CTI estima que, da área florestal ardida em 2017, 49,6% tenha sido pinheiro-bravo, 38,5% eucalipto, 7,4% carvalhos, castanheiros e folhosas, 3,5% pinheiro-manso e 1% sobreiros e azinheiras. Faz questão de destacar que 90% da área florestal ardida são pinheiros-bravos e eucaliptos, agrupando-os aos dois, naturalmente, como espécies mais inflamáveis do que as restantes. Esta ênfase dada à área de eucalipto ardido ter sido menor do que a de pinheiro-bravo é nova, já que o eucalipto foi a espécie que mais ardeu por área em 2016, 2015, 2014, 2011 e 2006, andando emparelhada em área ardida com o pinheiro-bravo há cerca de uma década e meia.
Não havendo no relatório uma avaliação da evolução da área ardida por espécie, o que é normal considerando que o relatório é sobre 2017, é difícil compreender que se tente tirar uma conclusão e que essa conclusão seja que “todas as espécies ardem igual”, até porque o relatório diz o contrário disto, referindo-se inúmeras vezes ao pinheiro-bravo e ao eucalipto como as “formações florestais que mais ardem”, que “tanto do ponto de vista absoluto como relativo, são o pinheiro-bravo e o eucalipto as espécies que mais arderam em 2017” e ainda que “a sua mistura [pinheiro-bravo e eucalipto] em povoamentos não parece diminuir, mas sim aumentar, a probabilidade de arder”.
Um dado muito relevante no relatório é o facto de se estimar que 42% da área que ardeu em 2017 não ardia desde 1975. Esta área, principalmente os pinhais litorais como o Pinhal de Leiria, são a enorme surpresa que Outubro de 2017 trouxe e que, naturalmente, aumentaram a percentagem de pinheiro-bravo ardido.
2017 foi de facto um ano cataclísmico, em particular os dias 15 e 16 de Outubro, construindo-se a tempestade perfeita: os ventos do furacão Ofélia conjugados com temperaturas altas recorde e humidades relativas baixas sob um território profundamente fragilizado por abandono, monoculturas e seca prolongada, deram origem a um inferno quase sem precedente à escala mundial. Isso fica claro no relatório, em particular na avaliação dos mega-incêndios (aqueles com área ardida superior a dez mil hectares).
Historicamente, houve 26 mega-incêndios em Portugal. Onze desses 26 incêndios ocorreram em 2017 e oito desses foram nos dias 15 e 16 de Outubro. Os dois maiores incêndios de sempre em Portugal ocorreram nestes dois dias, na Lousã e em Arganil, com áreas ardidas de, respectivamente, 65 mil hectares e 38 mil hectares. A estes oito mega-incêndios acrescem mais três grandes incêndios, com área ardida superior a cinco mil hectares nestes dias. Segundo o relatório, foi a primeira vez que se registou na Europa a ocorrência de mega-incêndios no Outono. Nestes dois dias ocorreu, fruto da conjugação do furacão Ofélia e das condições climatéricas no território continental, um fenómeno piro-convectivo, o maior de sempre na Europa e o maior do mundo em 2017, tendo ardido uma média de dez mil hectares por hora entre as 16h da tarde de 15 Outubro e as 5h da manhã de 16 de Outubro.
Nestas condições, como o relatório aponta, a área ardida poderia até ter sido superior, mas o gigantismo dos incêndios competiu entre si. E aqui, dificilmente seria possível haver uma enorme selecção entre espécies florestais, tal foi a velocidade e intensidade do inferno das chamas de 15 e 16 Outubro de 2017. Ainda assim, no centro do segundo maior incêndio de sempre em Portugal, o de Arganil, houve uma pequena fatia de mata pública que persistiu. A histórica Mata da Margaraça, composta principalmente por carvalho alvarinho, castanheiros, aveleiras, ulmeiros, cerejeiras, nogueiras, medronheiros, loureiros e azeireiro, considerada pelo Instituto de Conservação da Natureza como uma “relíquia” de florestas do passado, viu menos de 20% da sua área ardida, apesar de estar cercada por área ardida em todos os lados. Sem bombeiros ou apoio relevante, a sua estrutura de espécies e de ecossistema conseguiu reduzir a intensidade do fogo dos extremos para o centro. Foi a composição de espécies desta floresta que combateu o incêndios e o seu núcleo, mais maduro, ficou intacto, como destaca o relatório da comissão.
O bailinho dos defensores do eucalipto sob estes resultados não revela que em 2017 arderam 123 mil hectares de pinheiro-bravo e 97 mil hectares de eucalipto e que esses dois números são os maiores de sempre para as duas espécies. Também não revela que, dessa área, os pinheiros deverão ter morrido quase todos, enquanto nos eucaliptos o nível de mortalidade deverá estar perto de apenas 5%, bastando umas semanas para vê-los emergir de novo. Também não revela que a área de matos ardida foi de 42%, a mais baixa desde 2005. Ignora que houve espécies que quase não arderam, e que o território nacional não está condenado a ter de escolher apenas entre pinheiro-bravo e eucalipto. Ignora o próprio relatório.
Existe obviamente uma preferência por espécies nos incêndios, e que é perceptível até num ano infernal como 2017. Só a discriminação acirrada contra as espécies florestais que não dão dinheiro imediato justifica que se tenha feito este triste bailinho, regozijando-se pelo facto de o pinheiro-bravo, espécie em profundo declínio no nosso território, ter ardido mais do que o eucalipto, a espécie mais plantada do nosso país. É que essa é uma informação que, sozinha, diz pouco mais do que nada.