O que não disse Mário Centeno

O SNS e os portugueses podem contar com o ministro das Finanças?

Os sistemas de saúde, e não apenas o português, atravessam enormes desafios para a sua sustentabilidade. O modelo atual de prestação de cuidados de saúde está longe de satisfazer as necessidades crescentes da população e garantir uma utilização eficiente de recursos colocados à sua disposição. O envelhecimento populacional e a crescente prevalência de doenças crónicas colocam novos desafios e exigem respostas inovadoras centradas nas necessidades dos doentes e das famílias.

A evolução do modelo de prestação de cuidados exige que todos os atores assumam não ter todas as respostas, criando espaço para a inovação e para o aparecimento de novos atores. Sem dúvida que apenas num quadro gestionário de elevada competência e responsabilização será possível promover o desenvolvimento de um ecossistema propício à reestruturação do sistema de saúde.

Desde 1968, o Estado português reconhece que “a administração dos hospitais [...] tornou-se tarefa de profissionais, com preparação cuidada e estatuto adequado, visto que a mobilização de meios financeiros e humanos nos serviços de saúde atinge enorme volume e os prejuízos decorrentes de uma gestão pouco esclarecida podem ser importantíssimos, tanto do ponto de vista económico como social e humano”. Em 1980, o Estado vem mesmo regular a carreira de administração hospitalar, sem a rever desde então. Mais tarde, o estatuto do gestor público modificado em 2012 vem obrigar à celebração de um contrato de gestão com qualquer empresa pública, incluindo os hospitais, permitindo a avaliação de desempenho dos membros dos conselhos de administração.

Ora, o que fez o Ministério das Finanças sobre esta matéria? A carreira de administração hospitalar aguarda atualização apesar de o Ministério da Saúde a reconhecer como prioritária. A aplicação dos contratos de gestão aguarda pelo menos desde 2016 a aprovação de uma comissão de avaliação independente por parte do Ministério das Finanças.

A forte restrição orçamental, quer pela via do financiamento operacional, quer pela via do investimento, tem condicionado a capacidade do Hospital Público em melhorar os seus índices de desempenho qualitativo. Sejamos claros, as transferências do Orçamento do Estado para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em percentagem do PIB têm vindo em queda desde pelo menos 2010, sendo o ano de 2018 o mais baixo do período. Sim, mais baixo que durante o programa de ajustamento económico e financeiro (PAEF). Sendo o orçamento o instrumento por excelência de aplicação de políticas públicas, esta é a prioridade dada ao SNS — o menor investimento em percentagem do PIB desde 2010.

Contudo, nos últimos anos, os hospitais acomodaram, entre outras:

  •  A passagem das 40 para as 35 horas de trabalho semanais — sem compensação equivalente no número de profissionais,
  • As reposições remuneratórias,
  • A introdução de novas terapêuticas congeladas durante o PAEF,
  • Aplicaram taxas moderadoras mais reduzidas e um regulamento de transporte de doentes não urgentes mais abrangente.

Mesmo assim, os profissionais de saúde foram capazes, pelo seu sacrifício, de aumentar o número de consultas e o número de cirurgias realizadas.

Não basta criar desconfiança sobre a qualidade da gestão em saúde, é necessário promover a boa gestão e separar a boa da má moeda. Contudo, o Ministério das Finanças trata as instituições de saúde como suas repartições, aplicando as suas terapêuticas de um boticário para o controlo dos custos: restrição de tesouraria e adiamento burocrático da despesa. Assim, limita os orçamentos das instituições atribuindo orçamentos extremamente subestimados face aos seus custos fixos e vem no final do ano “premiar” as instituições menos eficientes através de subsídios adicionais para pagar aos grandes credores. Aprova recursos humanos a conta-gotas e sem que ninguém perceba as prioridades de aprovação, cria uma barreira para a contratação de auxiliares de ação médica e proíbe a contratação de profissionais em substituição. Pouco importam as cirurgias canceladas porque falta um auxiliar, um enfermeiro ou médico ausentes por motivos de doença ou licença de maternidade. Por outro lado, exige portarias conjuntas sempre que a despesa ultrapasse um ano civil. Já de si desnecessárias para uma gestão económica das organizações e mesmo para o controlo financeiro, os hospitais aguardam meses, trimestres e demasiadas vezes mais de um ano para verem estas portarias publicadas. Até lá, vão avançando com ajustes diretos mais onerosos, contrariando qualquer possibilidade de relação saudável com o mercado de fornecedores.

Os administradores hospitalares são os primeiros a assumir os seus erros e as suas fragilidades. É imperativo rever o quadro de qualificação da administração hospitalar e gestão em saúde, passando pela educação e formação especializada, atualização da carreira, processo de recrutamento transparente, avaliação do desempenho, e formação contínua. Ainda recentemente adotámos o Diretório de Competências de Gestão em Saúde da Federação Internacional dos Hospitais para informar e alinhar programas de desenvolvimento de gestão de serviços de saúde em todos os níveis pré-graduados e graduados de educação, formação contínua e desenvolvimento profissional. Neste mesmo sentido, em parceria com várias instituições académicas, lançámos um ambicioso e único programa de formação contínua para qualificar os vários profissionais que exercem funções de gestão no SNS.

Não basta sinalizar que a dívida a fornecedores está a aumentar e os hospitais são responsáveis pelo défice das contas públicas. É tempo de o Ministério das Finanças assumir as suas responsabilidades, reconhecendo os seus erros e promover a boa gestão no setor da saúde.

Da nossa parte, como sempre, terá sempre um parceiro para, com lealdade, encontrar e implementar soluções. Nós não desistimos do SNS e através dele melhorar os níveis de saúde dos portugueses.

O SNS e os portugueses podem contar com o ministro das Finanças?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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