“Não era um rapaz, não era uma rapariga, não tinha existência neste mundo”
É intersexo, isto é, tem características que fazem com que não encaixe nas definições de masculino ou feminino. Vincent Guillot, co-fundador da Organização Internacional de Intersexuais, vê com bons olhos a proposta que o Parlamento português tem em cima da mesa a proibir tratamentos e intervenções sem consentimento.
Cabelos longos, traços finos, 1,90 metros de altura, tanto veste um par de calças como uma saia, tanto fala de si no masculino, como no feminino. Não importa. Vincent Guillot, 52 anos, esteve recentemente em Lisboa, a propósito do Festival ¿Anormales?, organizado pela TransMissão (Associação Trans e não-Binária) e pelas Panteras Rosa (Frente de Combate à LesBiGayTransfobia).
O activista francês falou nas suas lutas e nas lutas da Organização Internacional de Intersexuais, que co-fundou em 2003: o fim dos tratamentos e das intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza feitas em crianças intersexo sem o seu consentimento, o acompanhamento psicológico de pais e crianças até à autodeterminação, a possibilidade de alterar a menção ao sexo nos documentos de identificação com um simples pedido e, em última instância, o fim da menção ao sexo nos documentos. A proposta remetida pelo Governo português à Assembleia da República parece-lhe boa, mas, diz, não garante acompanhamento aos pais e às crianças.
Como começa a sua história?
Como a história de todas as crianças intersexo que, desde os anos 1970 na Europa e desde os anos 50 nos Estados Unidos, foram apresentadas aos pais como monstros. Os meus órgãos genitais não correspondiam ao esperado. Quando tinha sete anos, começaram a abrir-me, a tirar-me o que achavam que não interessava, a injectar-me hormonas, a fazer algo que dizem que é um pénis. Fui submetido a dez cirurgias. Passei grande parte da minha infância no hospital.
Sentia-me sozinho. Não compreendia o que se passava. Quando já era um jovem adulto, voltei ao hospital para investigar e o mesmo médico disse-me: és um verdadeiro rapaz desde que tomes as tuas hormonas. Fiquei furioso. A questão era o que me tinham feito, o que tinham retirado do meu corpo e porquê.
Quando saiu uma lei sobre direito de acesso aos registos médicos [em 2002] pôde, por fim, ver o seu processo…
Acedi ao meu processo, mas encontrei muito pouca informação, quase só correspondência entre o hospital e o médico de família. Diziam que tudo correria bem se eu tomasse as minhas hormonas, sem explicar o que me tinham feito. E o certo é que o que me fizeram provocou muitos problemas. Sinto muitas dores, algumas difíceis de definir, como uma sensação de choques eléctricos nos órgãos genitais. Dói-me quando urino. E tenho problemas motores devido às lesões neurológicas relacionadas com as cirurgias.
Com o envelhecimento vieram os problemas típicos de mulheres idosas, como osteoporose, depressão, perda de massa muscular.
Quando percebeu que era diferente?
Sempre soube que não era o que desejavam. Quando nasceu o meu irmão, tive a certeza. Vi-o sem roupa e o corpo dele era diferente do meu. Toda a minha vida era um absurdo. Não era um rapaz, não era uma rapariga, não tinha existência neste mundo. Diziam-me que era um rapaz e eu tentava comportar-me como um rapaz.
Qual é o critério usado pelos médicos para escolher?
As capacidades técnicas. Se conseguem fazer um pénis que permita urinar de pé e penetrar uma vagina, é um rapaz. Se não, é uma rapariga. Dizem que é mais fácil fazer um buraco do que um mastro.
E no seu caso tinha tamanho suficiente...
Não sei. Não há nada no dossier que indique quais eram as minhas características genitais.
Que disseram aos seus pais?
O discurso para eles era: é um rapaz falhado, vamos consertá-lo.
Não foi, então, uma decisão deles?
Não. Eu tive uma relação difícil com os meus pais, mas hoje digo às pessoas intersexo que os nossos pais foram as primeiras vítimas. Nos dois processos judiciais que correm agora em França contra médicos e hospitais, os pais são parte interessada, ao lado dos filhos. Os seus testemunhos são cartas de amor extraordinárias.
É correcto dizer que estas intervenções são uma forma de “fabricar” transexuais?
Sim e não. É verdade que algumas pessoas intersexo se adaptaram aos corpos que lhes fabricaram, mas foram sujeitas a mutilação genital, tortura, violação. Não conheço uma que esteja feliz com isso.
Reivindica a expressão mutilação genital, um termo habitualmente associado a violação dos direitos das mulheres.
Em 2013, o Conselho da Europa classificou estas mutilações como mutilações genitais inaceitáveis e em 2014 a ONU condenou 30 países por tortura e mutilação genital sobre crianças intersexo.
Quando é que a sua revolta se transformou em activismo?
Quando ouvi a palavra intersexo pela primeira vez. Foi ao ver uma reportagem na televisão no início da década de 2000. Identifiquei-me instantaneamente. Precisava de uma palavra para me definir e a palavra era aquela.
Acontece haver pessoas que lhe dizem que experienciaram esse reconhecimento ao ouvi-lo falar?
Cada vez mais. Estamos no início da visibilidade das pessoas intersexo. Para já, há sobretudo a visibilidade das pessoas transexuais, da cultura trans. Quando uma pessoa intersexo vai à Internet à procura de respostas, normalmente cai num fórum de pessoas trans, que a orienta.
Há uma certa solidariedade?
É o mesmo tipo de opressão. A sociedade transporta uma visão binária: homem, mulher. É essa visão que intervém sobre os nossos corpos ou que nos impede de intervir sobre os nossos corpos.
Como surgiu a Organização Internacional de Intersexuais?
Como uma reacção a uma recuperação de poder dos médicos face ao primeiro movimento intersexo que existiu, que foi nos EUA. Já não trabalho na organização, porque acompanho vítimas, sou muito solicitado, mas continuo muito próximo.
Qual o motivo pelo qual esta questão só agora está a entrar no debate público?
Foi a mais combatida pela medicina. A medicina fez desaparecer a imagem da pessoa hermafrodita.
A Alemanha permite desde 2013 que a menção ao sexo fique em branco no registo civil e em 2018 vai discutir a possibilidade de haver “terceiro sexo” ou “sexo neutro”. Qual a sua opinião sobre isso?
A lei alemã é uma das piores. Foi uma lei feita a pedido dos médicos que mutilam as crianças intersexo. Essa lei permite dizer aos pais: vocês têm de permitir a intervenção, senão a vossa criança fica num limbo. Depois de ter sido aprovada, há mais mutilações. Os pais podem declarar um dos dois sexos e a pessoa deve ser capaz de mudar o registo mais tarde com um simples pedido. [As organizações intersexo que são próximas a esta organização não reclamam um terceiro género ou um género neutro; o que pedem é que seja abolida a menção ao sexo no registo civil e nos documentos, como aconteceu com a etnia ou a religião.]
Há algum exemplo de boa prática?
Há, por exemplo Malta, que interdita as operações em crianças e prevê um acompanhamento de cada criança até à autodeterminação e a possibilidade de, se desejar, aceder a modificações corporais. O Hospital Universitário de Lousene, na Suíça, também tem essa prática desde 2006. A Comissão Nacional de Ética Biomédica, na Suíça, recomenda que só haja intervenção com consentimento e que as crianças e os pais tenham acompanhamento psicológico até à autodeterminação. E eles fazem isso.
Qual a sua opinião sobre a proposta que está Assembleia da República portuguesa [de acordo com a qual, a menos que haja risco para a saúde, os tratamentos só devem ser realizados em menores de idade a partir do momento em que se manifeste a sua identidade de género, mediante consentimento expresso]?
Globalmente, penso que é positiva. Mas fico sempre inquieto quando se faz uma lei específica. Para quê fazer uma lei específica quando já sabemos que não é ético intervir num corpo sem razão médica, sem risco vital, sem consentimento? Isso é um fundamento da ética contemporânea.
No meu ponto de vista bastaria lembrar isso para que essas práticas fossem proibidas e para que o Estado parasse de as financiar, mas estamos naquilo a que chamamos a ética do monstro. Se a pessoa tem um corpo que não é conforme à expectativa social, é um corpo que está fora da lei, no sentido em que não se aplicam as leis que protegem os corpos. Se estes corpos fossem considerados como parte da espécie humana, o conjunto legislativo seria suficiente para os proteger.
No Egipto, a mutilação genital feminina é feita nos hospitais pelos mesmos médicos que operam as crianças intersexo. Em Portugal, seria impensável ter médicos a praticar excisão, no entanto há crianças intersexo que sofrem mutilações genitais nos hospitais públicos.
De que forma a proposta que está na Assembleia da República portuguesa se distingue do que existe em Malta?
É semelhante. A grande dificuldade é o “quando”. Quando é que consideramos que uma pessoa pode dar um consentimento esclarecido? Em qualquer caso, antes da puberdade não há nenhuma necessidade de intervir e há riscos para a saúde. O ideal seria estabelecer que desde os primeiros sinais de puberdade a criança trans ou a criança intersexo seja acompanhada por uma equipa que inclui os pais, podendo aceder numa primeira fase a bloqueadores de puberdade e numa segunda fase, se desejar, a modificações corporais.
Parece-lhe fundamental referir esse acompanhamento na lei?
É imperativo colocar em paralelo o acompanhamento dos pais e o acompanhamento da criança até à autodeterminação. Este acompanhamento psicológico não está previsto na proposta [portuguesa] e devia estar. Como é que uma criança pode ter uma noção real do que implica modificar o corpo? Pensamos que o que permite começar a pensar numa decisão é o início da puberdade.
Processou o médico que o operou?
Não foi possível. Quando pensei nisso, já era demasiado tarde, já tinha prescrito, por isso me dirigi à Organização das Nações Unidas e consegui três condenações — uma do Comité de Tortura, outra do Comité de Direitos da Criança e outra do Comité de Direitos das Mulheres. Fiz isso com base no meu caso, como um dos múltiplos testemunhos de pessoas intersexo, contra o Estado francês.
Qual foi o resultado prático dessas condenações?
Obtivemos um relatório do Estado francês e o anterior Presidente da República [François Hollande] declarou publicamente que as cirurgias em crianças intersexo eram mutilações e tinham de parar. Estas declarações conferem uma credibilidade acrescida às pessoas que hoje estão a processar médicos e hospitais.