Terapia genética pode ser a cura para hemofilia A?
Um ensaio clínico de uma nova terapia genética, no Reino Unido, com 13 pessoas que sofrem de hemofilia A grave teve resultados surpreendentes. Se o sucesso se confirmar nos estudos em maior escala, podemos estar perto de uma cura para o tipo mais comum de hemofilia.
Investigadores do Serviço Nacional de Saúde britânico (NHS, na sigla em inglês) publicaram os resultados da fase inicial de um ensaio clínico de uma nova terapia genética num grupo de 13 pessoas com hemofilia A grave. O artigo, publicado na revista New England Journal of Medicine, revela que 11 destes doentes atingiram níveis normais ou muito perto do normal da proteína (denominada factor VIII) que desencadeia o processo de coagulação de sangue.
A experiência foi realizada em Fevereiro de 2016. E, segundo os cientistas, apenas foi precisa uma única administração da terapia genética para conseguir que os doentes envolvidos no estudo atingissem níveis normais de factor VIII, uma proteína produzida no fígado. A equipa de investigadores usou um vírus para levar até ao fígado o gene que é capaz desencadear o mecanismo para a coagulação de sangue e que não funciona nos doentes com hemofilia de tipo A, a forma mais comum.
Passado apenas alguns meses do tratamento nas 13 pessoas com hemofilia A grave, 11 atingiram níveis normais da proteína que faltava, valores que foram mantidos e permaneceram estáveis. Ou seja, neste momento, consideram-se curados. E os dois doentes que não atingiram estes níveis conseguiram, apesar disso, um aumento da proteína suficiente para evitar o tratamento profiláctico que faziam e que, nestes casos, geralmente implica entre duas a três injecções semanais de factor VIII.
O ensaio clínico ainda está numa fase inicial mas o entusiasmo parece já sem travão. “Observámos resultados espectaculares que ultrapassaram largamente as nossas expectativas. Quando começámos, pensávamos que seria um excelente resultado se conseguíssemos uma melhoria de 5%, por isso estar a ver níveis normais ou perto do normal com uma redução drástica nas hemorragias é simplesmente extraordinário”, refere John Pasi, um dos autores do artigo e director do Centro de Hemofilia no Barts Health, um consórcio do NHS, citado num comunicado da Universidade Queen Mary de Londres.
Miguel Crato, membro da Comissão Nacional de Hemofilia e presidente da Associação Portuguesa de Hemofilia, também não esconde o entusiasmo, mas tenta temperá-lo com alguma precaução. “Seria uma notícia fantástica se se provasse que a terapia genética era capaz de curar a hemofilia, seria, de facto, uma revolução”, reconhece. Em Portugal, um rapaz em cada dez mil nascimentos tem hemofilia. A associação presidida por Miguel Crato, jurista e também ele hemofílico, tem 700 pessoas inscritas.
A hemofilia é uma doença genética hereditária e os doentes com a forma grave de tipo A não produzem praticamente nenhum factor VIII que é essencial para o processo de coagulação do sangue. Miguel Crato apresenta valores mais claros: “Enquanto uma pessoa normal tem cerca de 80 a 100% de factor VIII em circulação, as pessoas com hemofilia severa têm menos de 1%.” Ou seja, os traumatismos dificilmente estancam e por vezes sangram durante vários dias. Um dos principais problemas é quando estas lesões acontecem nas articulações que acabam por se deteriorar e afectar muito a qualidade de vida destas pessoas. Para prevenir estes danos, normalmente estes doentes têm de fazer (toda a vida) um tratamento profiláctico que consiste em injecções (em média duas a três vezes por semana) de factor VIII.
Conseguir reparar este problema genético “seria maravilhoso”, diz Miguel Crato. Mas, avisa, “um ano é pouco tempo para avaliar os resultados e é preciso esperar por mais dados que garantam a eficácia e segurança do tratamento”. Até porque as elevadas expectativas sobre a solução da terapia genética não começaram agora. “A terapia genética começou a ser experimentada para a hemofilia B há cerca de sete anos. A molécula da hemofilia A é mais complexa e as experiências começaram há cerca de dois ou três anos e só mais recentemente em doentes”, adianta. Por isso, insiste, “ainda é bastante cedo” para falar numa cura.
Há ainda um longo caminho a percorrer. É preciso, por exemplo, aumentar o número de participantes nestes ensaios. Mas também tentar encontrar as explicações para alguma variabilidade que os cientistas admitem ter encontrado na resposta dos doentes à terapia genética. Por outro lado, sabemos que os efeitos desta terapia duraram até agora. Mas será que vão durar para sempre?
Por fim, há ainda a questão do custo destas terapias. “A terapia genética é algo que pode ser muito dispendioso”, confirma Miguel Crato, que, no entanto, refere que “os cálculos apresentados em fóruns internacionais, onde esta questão tem sido muito discutida, apontam para que o custo da terapia genética seja equivalente ao valor que é gasto com cinco anos de tratamento da hemofilia”.
O comunicado da Universidade Queen Mary inclui a história de um dos participantes no estudo. É Jake Omer, um homem de 29 anos com dois filhos, que conta como esta terapia mudou a sua vida. O diagnóstico da doença foi feito aos dois anos e desde essa altura que todas as semanas recebia várias injecções de factor VIII para prevenir hemorragias. Agora, brinca com os filhos sem o pânico de se aleijar, joga futebol e sobe às árvores se lhe apetecer. “É estranho não ter de me preocupar com as hemorragias ou inchaços. A primeira vez que reparei na diferença foi quatro meses após o tratamento, quando deixei cair um peso no ginásio e fiz um golpe feio no cotovelo. Comecei a entrar em pânico, mas depois de colocar algum gelo durante essa noite acordei e estava tudo aparentemente normal. Esse foi o momento em que tive a prova que a terapia genética funcionou”, conta Jake Omer. No vídeo da BBC, aparece sorridente e diz que é mais livre. E, acrescenta, sente-se “um robô bem oleado”.