Abriu a época dos compromissos sobre o futuro da zona euro
Macron tem tido o cuidado de não insistir naquilo que é mais difícil para a chanceler.
1. A questão que está no âmago da reforma da União Económica e Monetária (UEM) é simples: de que forma é que o euro pode permitir a convergência real das economias que partilham a mesma moeda. Não é regressar ao passado, antes da crise económica e financeira de 2008, em que os mercados olhavam para a zona euro sem diferenciar as economias mais fortes das mais fracas. A crise da dívida eclodiu precisamente quando os mercados passaram a olhar para elas de forma distinta. A Europa não estava preparada para isso. As hesitações dominaram os primeiros tempos, agravando a crise. O pior já ficou para trás, com as saídas “limpas” da Irlanda e de Portugal e com o caso grego, o mais difícil, a correr bem. As políticas ofensivas do BCE, com programas de compra de dívida e com juros negativos, foram fundamentais. Passados oito anos de “revolução permanente”, em que a Alemanha assumiu o comando das operações para transformar o euro num verdadeiro marco, com um novo quadro institucional e novas regras, ainda falta a resposta à pergunta inicial.
2. Como garantir a coesão e a estabilidade da zona euro no futuro, perante inevitáveis choques externos, é o corolário da primeira questão. As divergências ainda são profundas, com várias propostas em cima da mesa, que serão um dos temas da próxima cimeira europeia, a 14 e 15 de Dezembro, mesmo que ainda sem o novo governo alemão. Jean-Claude Juncker anunciará a sua proposta amanhã, em Bruxelas. O seu discurso sobre o estado da União dava várias pistas, algumas das quais polémicas, como a extensão da zona euro aos 27 países, depois da saída do Reino Unido. Esta proposta só se compreende à luz da sua preocupação com uma Europa a várias velocidades, que teme venha a traduzir-se em novas divisões. A outra preocupação de Juncker é a transferência de responsabilidades que são da Comissão para outras instituições de natureza intergovernamental. A crise acentuou a perda de poder da Comissão, que já estava implícita no Tratado de Lisboa. Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, já apresentou na cimeira de Outubro passado a chamada “Agenda dos Líderes”, que contém todas as reformas que a Europa tem de levar a cabo até meados de 2019, incluindo a da UEM. As suas ideias aproximam-se bastante das de Paris e são partilhadas por vários países do Sul, incluindo em grande medida o Governo português.
O Presidente francês apresentou em Setembro, na Sorbonne, a sua ambiciosa visão para o futuro da Europa, com o devido destaque para a zona euro. As suas propostas assentam na ideia de que é necessária mais integração, mas que a uma maior partilha de soberania tem de corresponder uma maior partilha dos riscos. É esta parte que Berlim ainda não está em condições de aceitar, mesmo que haja sinais de que alguma coisa pode mudar. A ideia de que a uma maior integração da zona euro deve corresponder maior partilha das responsabilidades sociais e alguns passos no sentido da harmonização fiscal também são comuns. Abre-se a porta ao financiamento europeu de parte dos subsídios de desemprego em caso de crise num determinado país. A harmonização fiscal (que a Alemanha aceita) continua a ter a oposição do Luxemburgo e da Irlanda, que funcionam como paraísos fiscais dentro da própria União, ainda que de modo diferente.
3. Mas em Paris, Berlim ou Bruxelas as propostas ainda são suficientemente vagas para evitar radicalizar posições e prejudicar os compromissos futuros. Pierre Briançon lembrava recentemente no Politico que as propostas de Macron abriram uma discussão dentro do próprio Governo. Bruno Le Maire, o ministro das Economia e Finanças (que vem do centro-direita), preferia uma negociação “passo a passo” (como costuma dizer a chanceler), em vez de um “grande plano” (muito francês), demasiado ambicioso, quando, nos dias que correm, muitos governos europeus não querem grandes saltos em frente. Macron tem tido o cuidado de não insistir naquilo que é mais difícil para a chanceler. Alguns exemplos ajudam a perceber que ainda há muita coisa por clarificar, ao ponto de as mesmas palavras significarem coisas diferentes em Paris ou em Berlim. Para a França, é fundamental um orçamento próprio da zona euro com uma robustez significativa. Macron esclareceu que deve representar “vários pontos percentuais do PIB da zona euro”, para poder emitir eurobonds, financiar o investimento público ou as reformas e assegurar o apoio aos países que sofram choques assimétricos. Para a Alemanha, deve ser modesto e menos ambicioso. Merkel, sem rejeitar a ideia, já disse que deverá ser financiado por “pequenas contribuições e não por milhões de milhões de euros”, e deve servir para recompensar os países que levem a cabo reformas estruturais. Quando Wolfgang Schäuble (agora a presidir ao Bundestag) abre as portas a um Fundo Monetário Europeu, não está a falar do mesmo que França. Para ele, seria o Mecanismo Europeu de Estabilidade (o actual mecanismo de bail-out), mesmo que reforçado, mas mantendo a sua natureza de órgão burocrático para socorrer financeiramente países em dificuldades a troco de novos programas de ajustamento. O ministro das Finanças da zona euro, que contaria com o beneplácito alemão, também teria funções distintas na versão alemã e na versão francesa. Na primeira, seria um “fiscalizador” do cumprimento das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, mais do que um coordenador das políticas económicas e financeiras dos Estados-membros, o papel que Macron lhe atribui, com a sua ideia de que é preciso um governo económico na zona euro que vá além do Eurogrupo. Mesmo assim, Merkel já foi um pouco mais longe ao admitir, em Setembro passado, que essa função poderia ajudar a garantir “mais coerência” das políticas económicas e “assegurar que os factores competitivos sejam harmonizados”.
4. É aqui que chegamos à escolha de Mário Centeno, confirmada ontem à tarde. Centeno apresentou-se como candidato, não como aluno disciplinado e obediente de Berlim, mas para demonstrar que havia alternativas à austeridade a todo o custo, mantendo os compromissos do défice e criando as condições para um maior crescimento, devolvendo dinheiro às famílias e incentivando o consumo interno. Estará no centro deste debate fundamental. Se foi aceite por Angela Merkel, isso também quer dizer que Berlim percebe que a Europa está a entrar numa nova fase, na qual ultrapassar as divisões profundas provocadas pela crise é do interesse de todos. As propostas do primeiro-ministro português para o futuro da UEM, apresentadas em Bruges, contêm, também elas, o grau de moderação necessário para as tornar aceitáveis em Berlim. A negociação a sério terá agora de começar.