“O vegetarianismo não é tendência, é necessidade”
Austríaco, filho de pai croata, Paul Ivic lidera um dos raríssimos restaurantes exclusivamente vegetarianos distinguidos com estrela Michelin. E não acha que esteja a definir uma tendência, mas sim a antecipar o inevitável.
Não é, nem nunca foi, vegetariano. Especialmente quando vem ao Algarve e lhe põem carabineiros e amêijoas em cima da mesa. Mas na sua cozinha esses (e outros) bichos não entram. No TIAN, em Viena, Paul Ivicc cozinha em total harmonia com a natureza e com as plantas e vegetais que dela pode obter. A Fugas falou com ele no Vila Joya, onde esteve não apenas para comer amêijoas e carabineiros mas também para cozinhar, como convidado da etapa algarvia do festival Rota das Estrelas.
Quando vê o peixe e o marisco que há na cozinha do Vila Joya não fica com inveja de não os poder cozinhar?
(Risos) Não, não. Adoro o meu trabalho, e adoro poder comer o que o Dieter Koschina faz, por isso para mim é sempre bom poder vir aqui. Além disso, quando quero cozinhar peixe e marisco cozinho em casa.
Como é que se envolveu na cozinha?
Quando tinha 14 anos decidi deixar a escola, não queria continuar a estudar. Então a minha irmã disse-me: “Sabes, devias tornar-te chef”. Falou-me de todas as coisas maravilhosas que podia fazer, que podia viajar pelo mundo inteiro, trabalhar em qualquer lado e ser criativo. Aquilo soou-me a duas coisas: liberdade e independência. E isso era tudo o que sempre que quis ser: livre e independente.
Quis abrir o seu primeiro restaurante vegetariano logo aos 20 anos. Porquê?
A história por trás disso é engraçada. A minha tia é vegetariana e uma vez foi de férias, ficou numa daquelas estâncias com hotel e restaurante. Mas todos os dias tinha de comer o mesmo prato. Pasta al pomodoro [massa com tomate] e salada de feijão. Todos os dias. E isso deixou-me mesmo chateado porque já nessa altura sabia que sabores e possibilidades havia para criar pratos vegetarianos. Então por que raio é que um chef havia de preparar apenas pasta al pomodoro?
Mas acabou por não avançar.
Não. Era muito novo, primeiro quis aprender e viajar.
Como é que chegou ao TIAN, um restaurante de alta cozinha vegetariana?
Quando fiz 32 anos tive uma pequena crise que me levou a pensar no que é que havia de fazer com a minha vida. No que é que podia fazer, o que é que poderia ser interessante para mim. Cheguei à conclusão de que o que precisava era de um desafio novo. Li uma entrevista com o meu actual chefe, o Christian Halper, e percebi que o TIAN seria o sítio certo para mim — ele queria servir apenas comida vegetariana e falava de valores humanos.
Por uma questão ética, por uma questão filosófica, pelo desafio?
Na verdade, por nada disso. O meu chefe viajou por todo o mundo e muitas vezes apetecia-lhe comer em restaurantes vegetarianos. Só que quase sempre eram muito aborrecidos. Quando começámos, falámos sobre o que é que podíamos fazer diferente, sobre o que é que eu iria fazer. Podíamos ser um restaurante vegetariano, mas queria trabalhar com algo que está vivo. Tudo o que está na natureza está vivo. Vamos à floresta, podemos cheirá-la, senti-la, está viva. Então tomámos a decisão de nos centrarmos apenas em comida vegetariana e vegana.
Mas o Paul não é vegetariano, certo?
Não. Acho que tenho uma dieta equilibrada que é 80% baseada em vegetais e 20% em proteína animal. Isto porque quando venho a Portugal quero poder comer carabineiros e amêijoas [risos].
Que tipo de reacções costuma obter por quem não é vegetariano e experimenta o seu restaurante?
No princípio é sempre a mesma coisa: “Aposto que vamos chegar ao final da refeição com fome.” E muitos, quando olham para a ementa, perguntam-nos se não há mesmo carne. Dizemos que não. “Talvez peixe?” Também não. Temos que explicar que é vegetariano. E dizem sempre: “Só vegetariano”? Não é só, é vegetariano. Temos que explicar que não vão sentir falta de nada. E depois, no final da refeição, estão todos felizes, sentem-se bem e nós também.
Acha que o vegetarianismo na alta cozinha pode ser a próxima tendência, que outros restaurantes vão seguir o vosso exemplo?
O vegetarianismo não é tendência, é necessidade. Porque, apesar de haver fome no mundo, a maioria dos recursos continuam a ir para a produção animal. Para mim, a comida é mais do que apenas sustento, deve ser encarada com responsabilidade. E a comida liga as pessoas, tal como a linguagem, desde que tenha alma. Mas para ter essa alma não posso apoiar as indústrias massivas, a alimentar e a animal. O importante é mostrar às pessoas que elas devem comer a melhor qualidade possível, e esse problema não se põe em todos os sítios, como é óbvio.
Ou seja, há locais onde essa consciência é compatível com a confecção de produtos de origem animal?
Sim, por exemplo aqui. Se formos à cozinha do chef Dieter Koschina só temos bons produtos. Ele paga um preço justo aos seus fornecedores para que eles possam trabalhar bem e dar-lhe o melhor.
Tenta substituir os sabores da carne e do peixe na sua cozinha?
Não! Desculpe mas tenho de dizer as coisas como elas são: isso é uma treta. A natureza é maravilhosa, não vale a pena tentar imitar o que seja. Não é necessário. Basta usar os produtos, as plantas, da maneira certa. Por que deveria querer imitar o que quer que seja? Quando quero comer peixe, como peixe. Estamos a falar de natureza, e não de coisas artificiais.
Como é que vê a relação das pessoas com a comida evoluir? Acha que vão ficar mais alerta para as questões da proveniência e da sustentabilidade?
Espero que as pessoas passem a pensar mais sobre o que comem e de onde vem o que comem. E espero que as pessoas queiram comer mais comida de origem natural, orgânica, e não aquela que é fabricada industrialmente. É preciso saber trabalhar os ingredientes da melhor forma, ver para lá do óbvio. Há muito desperdício mas temos de trabalhar até conseguirmos não desperdiçar nada. Se provarem o meu menu vão perceber que todos os pratos são feitos com uma filosofia de desperdício zero. Usamos tudo.
Imagino que essa filosofia exija um grande processo criativo até encontrar as combinações certas e a maneira de usar, por exemplo, todas as partes da beterraba ou do melão, como faz num dos seus pratos. Como é que funciona esse processo?
Tenho a mesma equipa há cinco anos. Eles cresceram comigo e agora fazemos todo este processo juntos. São jovens, criativos, procuram por informação em todo o mundo. Então tentamos pôr os melhores sabores em cada prato. Quando começámos, eles mostravam-me pratos e eu nunca estava satisfeito. Dizia-lhes: ‘Quero mais, mais sabor, mostrem-me mais coragem.’ Porque queremos surpreender as pessoas. Eles estavam preocupados, mas eu dizia-lhes que não se preocupassem, que tentassem e voltassem a tentar, que brincassem com os ingredientes. Porque se estivessem só preocupados em fazer o melhor não conseguiam crescer. Mas se sentissem segurança e tivessem oportunidade de se divertirem no trabalho algo de bom havia de surgir e seria assim que conseguiriam atingir os melhores resultados.
Trabalha principalmente com produtos locais?
Trabalho quase exclusivamente com produtos locais. Mas não quero trabalhar apenas com produtos locais, quero trabalhar com produtos de todo o mundo. Se seguirmos a política hoje em dia na Europa ou nos Estados Unidos vemos está tudo a pender para a direita. Não gosto disso.
Na Áustria principalmente.
Sim. E eu acho que quando todos trabalhamos juntos, ficamos juntos, dá-se uma mistura muito interessante, que nos estimula, que nos impede de ficarmos aborrecidos. Gosto dos sabores do mundo. Não sou austríaco, não sou croata, sou um homem do mundo. Por isso, sim, tento apoiar ao máximo os produtores locais mas também quero apoiar outros produtores, outros fornecedores que façam um bom trabalho.
Alguma vez se sentiu limitado por causa desta abordagem à cozinha?
Não, nunca. Adoro ter de me manter criativo. Quando há uma limitação em termos de produtos temos de usar mais a criatividade. Então, esta nossa abordagem também é uma opção de criar uma nova forma de usar estes produtos. Por isso, não, nunca me sinto limitado. É mais limitador trabalhar com todos os ingredientes.
Porquê?
Porque não é necessário tanto foco. Se tiver um lagostim, ou um carabineiro, como elemento principal de um prato é fácil. Mas se esse elemento principal for uma cenoura, para surpreender é preciso pensar no que é que se vai fazer com ela. Para mim, essa limitação é a melhor forma de me manter criativo na cozinha.