Vilar Formoso recorda quando chegar ali era chegar à vida

Vilar Formoso, Fronteira da Paz – Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes é inaugurado esta tarde, na presença de famílias judias que encontraram em Portugal a segurança, depois da fuga às tropas nazis.

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O memorial desafia os visitantes a atravessarem uma Europa em guerra, tal como os refugiados que homenageia Nelson Garrido
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O projecto passou pela reconversão de dois antigos armazéns anexos à estação ferroviária por onde passaram muitos dos refugiados que entraram em Portugal Nelson Garrido
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A historiadora Margarida Magalhães Ramalho e a arquitecta Luísa Pacheco desenvolveram o projecto Nelson Garrido
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Nelson Garrido

As pesquisas de Margarida de Magalhães Ramalho sobre os refugiados da Segunda Guerra Mundial que passaram por Portugal estão cheias de coincidências que ela desfia entre sorrisos. Um desabafo com um amigo que, por acaso, almoça com alguém que tem uma caixa cheia de informações sobre o caso específico que a investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa andava a seguir há meses, sem qualquer resultado. Ou um nome que leva a outro. Até à mulher que, numa conferência, perante um filme a preto e branco feito em Portugal por um refugiado num local indeterminado, se levanta e revela: “É Vilar Formoso, está ali o meu pai." E é precisamente nesse lugar, Vilar Formoso, que este sábado se inaugura o Memorial aos Refugiados e ao Cônsul Aristides de Sousa Mendes, onde estão muitas das histórias que Margarida Magalhães Ramos foi descobrindo, num espaço cheio de simbolismo, desenhado pela arquitecta Luísa Pacheco Marques.

O memorial, baptizado Vilar Formoso, Fronteira da Paz, estende-se por dois antigos armazéns anexos à estação ferroviária a que, durante a guerra, chegaram muitos dos que procuravam fugir das perseguições nazis. Num tempo de fronteiras fechadas a sete chaves e em que um visto de entrada em Portugal valia, literalmente, a vida, a povoação fronteiriça viu-se, de súbito, invadida por estrangeiros que chegavam de comboio ou de carro. Se tudo corresse bem, a estadia era curta – algumas horas de espera pelo controlo de passaportes e bagagens, nos dias de maior afluência –, mas também houve casos que correram mal, como o que Magalhães Ramos e Irene Flunser Pimentel contaram no livro O Comboio do Luxemburgo (Esfera dos Livros, 2016) e que também está retratado no memorial que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deverá inaugurar esta tarde.

Mas, antes de lá chegar, ao espaço dedicado à chegada dos refugiados a território nacional e às vidas que por cá viveram até à partida para outras paragens, os visitantes terão de atravessar toda a guerra. Os dois armazéns já não são, por isso, dois armazéns isolados, mas um contínuo ligado por um corpo novo, escuro a contrastar com o branco das paredes exteriores dos dois edifícios pré-existentes, e que Luísa Pacheco Marques diz ter sido desenhado como “o fragmento de uma suástica”. Vilar Formoso e Portugal estão só depois da travessia dessa ligação retorcida, cheia de esquinas em que não se sabe muito bem o que virá a seguir.

Logo no início da visita que ficará acessível a todos a partir da próxima semana, o primeiro armazém está transformado num longo corredor sinuoso, que se vai estreitando e, começando num cubo “sólido, neutro e aparentemente estável” – onde ainda é possível ver imagens de famílias judias a passearem ou a brincarem nas ruas e em parques de Viena, sob o lema “Gente como Nós” –, vai assumindo uma forma hexagonal, ao longo de seis blocos, cujo significado a arquitecta explica: “Seis, em numerologia, significa 'medo’, seis são também as pontas da estrela de David." Ao longo desse corredor escuro, há vídeos, cartazes, fotografias e textos que sintetizam as transformações na Alemanha e na Europa desde a chegada de Adolf Hitler ao poder, em 1933, até 1940, quando o exército alemão já invadira grande parte do continente e Portugal recebeu a grande vaga de refugiados.

“Tornou-se um espaço muito linear e estreito em algo ainda mais apertado, transmitindo quase a sensação física do que o refugiado passou”, afirma Margarida Magalhães Ramos, que coordenou todo o conteúdo do memorial promovido pela Câmara de Almeida. As incertezas sobre o que irá acontecer durante a fuga e quem ajudará os refugiados encontram-se traduzidas no corpo intermédio do memorial, onde está também a área dedicada ao cônsul português em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, cujos vistos permitiram salvar a vida a milhares de pessoas. Uma cópia digitalizada do livro de registos do consulado – o original aguarda decisão da UNESCO quanto à sua inclusão no programa Memória do Mundo – permite descobrir, página a página, os nomes de parte daqueles a quem Sousa Mendes, contrariando as ordens do Governo português, entregou vistos.

Céus azuis

As esquinas tortuosas, os caminhos estreitos do memorial, terminam aqui. No segundo armazém, o único de todo o corpo do museu que existia durante a Segunda Guerra Mundial, tudo é claro e de formas arredondadas. “Porque os abraços são redondos”, explica Luísa Pacheco Marques. As paredes, de azul claro, pretendem recriar o céu azul descrito com alegria por vários do que conseguiam chegar, finalmente, a Vilar Formoso. Alguns dos aspectos mais singulares do memorial estão nesta ala.

Desde logo, projectado num grande ecrã, o filme do documentarista russo George Rony, que chegou a Portugal com um visto de Sousa Mendes, e confessou num livro que escreveu sobre a guerra, aqui regressou à câmara de filmar “que não usava desde que abandonara Paris”. O curto filme, que está nos arquivos da Cinemateca Portuguesa, e em que se vêem filas de carros na povoação e refugiados a receberem tigelas de sopa das mãos de gente da terra, já pode ser visto online no Museu Virtual Aristides de Sousa Mendes, mas o mesmo não se pode dizer das reproduções dos trechos escritos pelo então responsável pelo Posto de Turismo de Vilar Formoso, António Hartwich Nunes, que chegaram às mãos de Margarida de Magalhães Ramalho através de uma das tais coincidências que entremeiam o seu trabalho. As palavras do funcionário público, descrevendo a chegada à fronteira, num só dia de Junho de 1940, de “duas mil pessoas”, situação que se repetiria nos dias seguintes, eram, até agora, desconhecidas do grande público, explica a investigadora, e são um importante testemunho do que ali se viveu nesse período em que se pensa terem chegado em massa os refugiados com visto do cônsul de Bordéus.

Com um investimento superior a um milhão de euros – suportado em cerca de 350 mil euros por fundos europeus da EEA Grants e pela Direcção-Geral do Património Cultural, tendo a fatia remanescente cabido à Câmara de Almeida –, o memorial faz todo o sentido no tempo actual, defendem a investigadora e a arquitecta que desenharam o projecto, enquanto relembram os recentes acontecimentos em Charlottesville, nos Estados Unidos. “Assustador” e “arrepiante” são os termos que ambas usam para descrever as imagens dos homens com tochas e bandeiras nazis a percorrerem as ruas da cidade norte-americana. “Mas o que é isto? Outra vez a mesma coisa? Como é possível”, questiona a historiadora.

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