Os portugueses mortos no Holocausto
Durante quase um ano, andámos à procura da resposta a uma pergunta prévia à questão da historiografia – e mais directa: seria possível que, de todos os prisioneiros que passaram por Auschwitz, de tantos países, nenhum fosse português?
Encontrámos a história de Luiz Ferreira, de Acácio Pereira, de Maria d’Azevedo, de Michael Fresco, de Duarte da Paixão, de Augusto José Rodrigues... Homens e mulheres de Cascais, de Odivelas, do Trancoso, de Lisboa, de Braga. Quase todos tinham a estrela vermelha, símbolo dos prisioneiros políticos. Uns eram comunistas, outros colaboravam na Resistência francesa. Um tinha a estrela amarela, era judeu, filhos de judeus turcos de Constantinopla que se fixaram em Lisboa no fim do século XIX. Alguns não seriam nem uma coisa nem outra – eram simplesmente apanhados nas rusgas das tropas alemãs e mandados para os trabalhos forçados.
Os jornalistas Patrícia Carvalho e Nelson Garrido mergulharam nos arquivos do International Tracing Service, na Alemanha, durante horas a fio. Criados em 1943, os arquivos só abriram as portas a historiadores e jornalistas em 2007. Só em 2007 ou já em 2007. As duas leituras são possíveis. Nestes arquivos, estão guardados 30 milhões de documentos que não chegaram a ser destruídos pelos nazis no fim da guerra. Incluem os nomes dos prisioneiros dos campos, as listas de entradas e transferências de campos, os Livros dos Mortos, as avaliações médicas, a relação de bens de cada prisioneiro e até as listas de quem tinha piolhos. Aí, o PÚBLICO confirmou que nunca houve um único pedido de informação de ou sobre Portugal.
Espanta este silêncio. As causas são várias. É uma história desconhecida. O vazio da historiografia sobre este tema começará por aqui. Além disso, no universo total de seis milhões de mortos durante a Shoah, os portugueses dos campos de concentração representam uma gota de água. Há também o factor tempo: durante os primeiros 30 anos a seguir ao fim da II Guerra Mundial, este era um assunto incómodo em Portugal. Falar dele expunha uma verdade difícil: o regime de Salazar não conseguira evitar a morte de cidadãos de um país neutral. E depois de 1974, havia a história do Estado Novo para estudar.
De todas, talvez a razão desta distância da história esteja nas palavras do historiador Diogo Ramada Curto, que no seu recente livro Para que serve a história? escreve o seguinte: “Apesar da pobreza dos debates, parece existir em Portugal um mercado bem consistente para a história de Portugal. Centrado quase exclusivamente na produção de bens nacionais – ou seja, numa historiografia feita por portugueses sobre a sua nação e, se tanto, o seu império – tal mercado confunde-se com a expressão de sentimentos difusos de uma nostalgia pelas grandezas do passado." Nada disso existe nas histórias dos portugueses mortos nos campos de concentração nazi. Grandeza só houve na medição do horror.