Uma boneca, uma cicatriz e um retrato em Elvas

Três mulheres recordam o que significou para elas e as suas famílias o contacto com Portugal durante a Segunda Guerra Mundial.

Foto
Rachel Galler Wolf NELSON GARRIDO

Joan Arnay Halperin, 72 anos, chegou a Vilar Formoso mais cedo do que a maior parte dos convidados. A mala que trouxe de Nova Jérsia, nos Estados Unidos, continha bens preciosos para o conteúdo do memorial. Uma boneca que o português Alberto Malafaia deu à sua irmã, Yvonne, quando esta viveu durante 20 meses com os pais, refugiados, na Figueira da Foz; e 50 exemplares do livro que escreveu sobre a história da sua família judia e polaca, incluindo a parte em que descobriu, aos dez anos, que tinha tido uma irmã. Porque Yvonne, nascida em Junho de 1938, e que recebera, com os pais, o salvador visto do cônsul Aristides de Sousa Mendes, acabaria por morrer pouco depois de deixar Portugal, quando a família vivia num campo de internamento na Jamaica. Hala Krakowiak, a mãe de Joan, teve dificuldades em falar dessa sua primeira filha até morrer, recorda ao PÚBLICO, pelo telefone, a autora de My Sister’s Eyes, mas já não era relutante em descrever a imagem que lhe deixaram os portugueses: “Dizia sempre que eram as pessoas mais maravilhosas do mundo."

Em Vilar Formoso, Joan, que é também directora de Iniciativas Educativas na Sousa Mendes Foundation, deverá cruzar-se com outros familiares de refugiados e antigas refugiadas como Blanchete Fluer e Rachel Galler Wolf.

Encontramos Rachel num café no centro de Braga, onde aproveita para descansar da viagem desde o Luxemburgo, antes de seguir para Vilar Formoso. Tem 95 anos, mas parece bem mais nova. E conta uma história diferente da dos pais de Joan, já que Vilar Formoso, para ela, os pais e a irmã, foi pouco mais do que uma miragem. A família chegou à fronteira portuguesa, mas não conseguiu entrar. Era uma das que viajavam no comboio carregado com quase 300 judeus do Luxemburgo que acabaram por ter de regressar a França, depois de um confuso impasse que os levou a permanecerem encerrados no transporte, sem quaisquer condições, durante oito dias. “Só víamos carris”, diz, agora sorridente, Rachel, enquanto mostra as marcas de um corte na mão direita, que diz ser a sua “recordação pessoal” desses dias – a faca que usavam para cortar o pão que lhes era distribuído uma vez por dia resvalou e cortou-a.

Internada no campo em Mousserrolles, perto de Bayonne (França), a família de Rachel acabaria por conseguir seguir para Casablanca, em Marrocos, onde, finalmente, e após mais alguns meses de espera, o navio português Serpa Pinto a transportou para Nova Iorque.

Esse não seria o destino da família de Blanchete Fluer (nascida Rubin), hoje com 88 anos. A fuga da Bélgica para França foi rápida, mas aí o processo encravou. Estiveram algum tempo em Bordéus, tentando obter um visto norte-americano, mas não conseguiram. Um dia, recorda Blanchete ao telefone, a partir de Viseu, onde se hospedou antes de seguir para Vilar Formoso, os alemães tentaram convencer os judeus belgas a voltarem para casa. “Havia uns autocarros e era preciso entregar o passaporte. O meu pai queria voltar e já entregara o passaporte a uma mulher alemã quando o meu irmão, de 14 anos, começou a chorar, a dizer ‘eu não acredito nos alemães’. O meu pai bateu-lhe na cara, mas a mulher alemã disse ao meu pai: ‘ouça o seu filho’. E devolveu-lhe o passaporte."

Em 1942, a família acabou por obter um visto português na cidade francesa de Nice e entrou em Portugal por Elvas, onde um fotógrafo se encantou com o perfil de Blanchete na rua e lhe pediu para lhe tirar o retrato, que queria colocar na montra da sua loja. Ficariam a viver nas Caldas da Rainha até ao final da guerra. Blanchete, que chegou a Portugal pouco antes de completar 13 anos, adorou esse tempo por cá. A filha Danielle, que a acompanha, recorda como a mãe sempre disse que queria regressar a Portugal “para agradecer aos portugueses o facto de a terem salvado”. Fizeram-no, no ano passado. Agora voltaram para conhecer o memorial. “Viemos para honrar as pessoas. É o mínimo que podemos fazer”, diz Danielle, frisando a generosidade dos que se cruzaram com os refugiados. “Todos os que sobreviveram não foram salvos por governos, mas pelos indivíduos que mostraram compaixão e bondade”, diz, antes de rematar: “E os portugueses são as pessoas mais simpáticas e com paciência para ajudar que já encontrei."

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