Nasceu um presidente? A nova dimensão do conflito polaco
O veto do presidente Duda muda o quadro do conflito sobre o Estado de direito.
Nunca tomem nada como definitivo na Polónia, nem o bem nem o mal. A batalha sobre o Estado de direito voltou a mudar de face. Entrou em jogo mais um actor, o Presidente, Andrzej Duda, que vetou duas das três leis aprovadas na semana anterior pelo Parlamento e que significavam a “domesticação” do Tribunal Constitucional (TC) e a subordinação do sistema judicial (ver PÚBLICO de 22 de Julho).
O veto foi absolutamente inesperado e provocou a fúria do “homem forte” da Polónia, Jaroslaw Kaczynski, e do seu partido, Lei e Justiça (PiS). Além de acusar Duda de “um sério erro”, prometeu reduzir as férias do Parlamento e voltar à carga numa nova frente: depois de ter “normalizado” os media públicos, promete atacar agora os privados e desmantelar grupos mediáticos ligados ao capital estrangeiro. Mais um ponto de confronto com a Europa e, previsivelmente, com Duda. O jornalismo polaco é muito forte.
Até agora, Kaczynski controlava todas as instituições: faltava-lhe o Tribunal Constitucional. Agora, além de com a Comissão Europeia e os manifestantes polacos, tem de se confrontar ou negociar com o Presidente.
O factor Duda
Kaczynski escolheu Duda por ser “obediente”. E, de facto, ele promulgou até agora todas as leis, mesmo as mais discutíveis. Não deu posse, inconstitucionalmente, a três juízes do TC designados pelo anterior Parlamento. A oposição chamava-lhe o “notário de Kaczynski”. Fez no passado críticas duras à “casta dos juízes”. Por tudo isto, a sua inesperada viragem foi um choque para o Governo. Além de surpresa, é um acontecimento político relevante.
Jornalistas polacos atribuem a sua viragem à combinação das pressões europeias com as manifestações de rua que o interpelavam directamente. De momento, o Governo pouco tem a temer da oposição, desmoralizada e dividida e que apenas sabe dizer “não ao PiS”. Mas as manifestações, que tendiam a alargar-se e que passaram a ter a novidade da participação maciça de jovens, eram uma ameaça que podia alastrar e reanimar a oposição antes das eleições de 2019. Disse o porta-voz de Duda: “O Presidente tomou em consideração as análises legais (...), mas também não podia pretender que as manifestações não existem.”
Outros jornalistas polacos falam numa vontade de “emancipação”. Duda ficou furioso — disse-o publicamente — por o Governo não o ter informado antecipadamente dos seus projectos de lei. Um presidente que se emancipa por ser considerado “irrelevante” é uma figura conhecida na História.
Numa análise intitulada “O nascimento de um presidente polaco”, no Politico Europe, Michal Broniatowski escreve que o acto de Duda “é sem retorno”. As reacções do PiS contribuirão para isso mesmo: o ministro da Justiça, Zbigniew Ziobro, um “inimigo de estimação”, já lembrou que o jovem Duda não foi muito corajoso na época do fim do comunismo. O regime comunista morreu em 1989, mas continua a ser o fantasma com que Kaczynski ataca os adversários.
O veto abre um período de incerteza. Duda anunciou que faria uma contraproposta ao Parlamento no prazo de dois meses. Tencionará exigir uma maioria de três quintos neste tipo de leis e o respeito da Constituição, verificado pelo TC. O PiS só obteria os três quintos, tanto para ultrapassar o veto presidencial como para fazer aprovar os seus projectos, se conseguisse os votos do partido de Pawel Kukiz, um cantor rock que dirige um partido populista de direita. É pouco provável. Enfim, não se sabe se a mobilização social se vai manter depois de um interregno de semanas.
A Polónia e a Europa
Esta “guerra polaca” não é um fenómeno novo e não surge na esteira da vaga populista. Remonta aos anos da transição, 1989-90. O eurocepticismo do PiS assentou sempre num projecto nacionalista, ultraconservador e autoritário: a defesa dos “valores polacos” perante o “cosmopolitismo”. Os gémeos Kaczynski situavam-se na extrema-direita do Solidariedade. Fizeram parte da equipa de Walesa no início da sua presidência, quando ele estava em disputa com a ala liberal do Solidariedade. Em 2001, fundaram o PiS.
No poder entre 2005 e 2007, tentaram pôr em prática o seu plano da “IV República”. O mesmo de hoje. A diferença é que, em 2005, não tinham a maioria absoluta. Obtiveram-na quase miraculosamente em 2015, graças ao descrédito do Governo da Plataforma Cívica. Lembre-se, por curiosidade, que Bento XVI visitou a Polónia em 2006 e pressionou o episcopado polaco a demarcar-se da deriva conservadora e da “caça às bruxas” de então. E recebeu em privado os juízes do TC que eram, então como hoje, as “bestas negras” dos Kaczynski.
A Polónia, talvez o mais “europeísta” dos países da UE, votou nos partidos católico-liberais, nos pós-comunistas (liberais e convertidos à NATO), no PiS, depois na Plataforma Cívica, de Tusk, e de novo no PiS. A regra é a alternância.
Bruxelas e os polacos
A dimensão e as características da Polónia põem um problema complicado à UE. É o “país exemplar”, o que melhor aproveitou a integração na UE e sempre responsável perante os problemas geopolíticos da Europa. Ao mesmo tempo, elegeu um governo que passou a violar princípios fundamentais, o que põe em causa a identidade democrática da UE. Associada à Hungria de Orbán, ameaça agravar a nova ruptura Leste-Oeste na UE.
As pressões europeias são eficazes, quanto mais não seja porque a esmagadora maioria dos polacos jamais se arriscará a abdicar dos benefícios económicos e da segurança que a Europa e os Estados Unidos lhe dão. Note-se que o Departamento de Estado norte-americano também fez uma advertência a Varsóvia.
Clamar pela aplicação imediata do Artigo 7.º do Tratado da UE, e pela suspensão do seu direito de voto, é pouco inteligente. Para declarar a Polónia “fora de lei” seria necessária a unanimidade no Conselho Europeu (menos a Polónia). Não acontecerá. As pressões que a UE pode e deve fazer serão muito mais eficazes, se visarem estimular a resistência polaca aos projectos de Kaczynski.
A viragem de Duda, sensível aos protestos internos, cria novas e melhores condições para pressionar Varsóvia. O resto só os polacos o podem fazer e, seguramente, fá-lo-ão. Mas Kaczynski joga aqui a sua vida política e o combate será implacável.