A Venezuela e a mesma velha cantiga
A Imagine, poder-se-ia ripostar com uma outra canção de Lennon, Power to the people: “Poder ao povo, agora.” Mas Maduro não sabe cantá-la. Nem quer.
Muitos ainda se lembrarão que, num momento dramático para o futuro dos timorenses, o general indonésio Wiranto, responsável directo por muito do sangue derramado em Timor-Leste antes e depois do referendo que em 1999 decidiu a independência do país, resolveu cantar, numa sessão de karaoke muito difundida, a conhecidíssima canção Feelings. “Nada mais do que sentimentos (…)/ lágrimas rolando pela minha face.” Nas ruas, corria sangue.
Agora, na Venezuela, enquanto nas ruas de Caracas e de muitas outras cidades do país alastra o caos e a revolta, sem fim à vista (e também corre sangue inocente), o presidente Nicolás Maduro aproveitou uma das suas insistentes comunicações ao país para cantar uma canção: Imagine, de John Lennon. “Imaginem toda a gente/ a viver a vida em paz”; ou “Imaginem toda a gente/ a partilhar o mundo”. Claro que Maduro não acredita nisto e, tal como Wiranto escondia atrás da imagem doce dos “sentimentos” e das “lágrimas” uma vontade incontrolável de submeter pela violência (coisa que fez) aqueles dizia “amar”, também Maduro imagina coisas bem diferentes daquelas que canta. Num e noutro caso, aliás, não importa a letra, porque se trata da mesma velha cantiga: não de embalar, mas de enganar, de fingir respeito e bons sentimentos para, a coberto deles, impor despotismo e tiranias. O que se passa na Venezuela, herança de Chávez multiplicada por mil na era de Maduro, é a aliança da mais pura incompetência disfarçada de progressismo com um ímpeto ditatorial endémico ao “chavismo”, incapaz de lidar com a democracia, as lutas políticas e ideológicas e demasiado cego para acreditar que tudo isso é defensável seja a que preço for: uma economia paralisada, miséria, violência, prisões arbitrárias, mortes.
Com mais de 100 mortos e milhares de feridos desde Abril, mês em que se intensificaram as manifestações contra Maduro e as suas políticas antidemocráticas, o que o regime agora prepara é uma assembleia constituinte, saída de eleições-relâmpago (já a 30 de Julho), que reforce o poder actual e lhe dê “legitimidade”, ainda que falsa, para governar sem diálogo.
Enquanto, na oposição, forças moderadas apelam a um processo de reconciliação e de entendimento entre as forças partidárias, de modo a tirar o país do caos, Maduro só vê – melhor, só “imagina” – um poder que não partilhe com mais ninguém a não ser com os seus leais seguidores. A Imagine, poder-se-ia ripostar com uma outra canção de Lennon, Power to the people: “Poder ao povo, agora.” Mas Maduro não sabe cantá-la. Nem quer.