Pensões de invalidez diminuem para quase metade em duas décadas
Critérios das juntas para atribuição de reformas por incapacidade permanente para o trabalho estão cada vez mais apertados, lamentam associações de doentes e reconhecem médicos.
É cada vez mais difícil conseguir uma reforma por invalidez em Portugal. Comecemos com um caso-limite: no ano passado a Segurança Social recusou a reforma por incapacidade permanente a um tetraplégico. Sim, leu bem: um tetraplégico. Foi uma situação de tal forma inusitada que mereceu a intervenção do provedor de Justiça, que destaca este caso no seu último relatório (2016).
Foi um caso excepcional, um “erro” que a Provedoria de Justiça conseguiu que fosse corrigido, explica o gabinete de José de Faria Costa. Haverá outros do mesmo género? É impossível responder. O que as cruas estatísticas permitem perceber, sem margem para dúvidas, é que o número de pensões de invalidez atribuídas pela Segurança Social (SS) caiu para quase metade em duas décadas: se em 1997 havia 398 mil pessoas nesta situação, no ano passado o número rondava 238 mil.
Os dados adiantados pelo Instituto da Segurança Social (ISS) ao PÚBLICO são escassos: entre 2008 e 2016, dos 352.863 requerimentos de pensão de invalidez decididos pelas comissões de verificação de incapacidades (vulgo juntas médicas) foram “deferidos 159.021”, adianta aquele organismo. Mais de metade (cerca de 55%) foram, portanto, declarados capazes para o trabalho.
Dois terços considerados aptos
Mas os números da Caixa Geral de Aposentações (CGA) que dizem respeito aos funcionários públicos e constam do último relatório de actividades - e não são comparáveis com os da Segurança Social por terem outra base de cálculo e outra série temporal - são mais expressivos: entre 2011 e 2015, nas juntas médicas para verificação de incapacidade permanente, quase dois terços dos requerentes (64,1%) foram considerados “aptos” para o trabalho. Os “incapazes” representam o restante terço.
“Desde há alguns anos que os critérios vão sendo cada vez mais apertados; antes, ai de quem não reformasse uma pessoa com cancro; agora, ter uma doença oncológica não implica que se dê a reforma por invalidez”, esclarece um médico que integra uma comissão de verificação de incapacidades permanentes da SS e que pediu para não ser identificado.
“Seguramente, somos muitas vezes injustos. Seguramente, somos muitas vezes enganados”, sintetiza, enfatizando a dificuldade de avaliação de alguns casos. “Em Portugal, ainda há muita gente que vai pedir a reforma por incapacidade porque não tem emprego - e o critério das juntas é clínico, não social”, lamenta. “Há também muitas pessoas que mentem, que aparecem nas juntas de canadianas ou com colares cervicais” que largam, mal saem das instalações da Segurança Social, segundo conta o médico. “Era bem mais fácil dar a incapacidade a toda a gente, mas isso não seria justo”, remata.
Para recorrer é preciso dinheiro
Ana Elisabete Ferreira, advogada que presta apoio jurídico ao Núcleo Regional do Centro da Liga Portuguesa contra o Cancro, destaca igualmente que “os critérios estão muito apertados”. Mas a sua visão da realidade é diametralmente oposta. A experiência leva-a a afirmar que actualmente em Portugal as pessoas “quase têm de estar em coma” para terem direito a pensão de invalidez. “É um problema gravíssimo, o sistema é extremamente dificultante”, considera.
A advogada recorda casos como o de uma professora que, na sequência de radioterapia após uma mastectomia, ficou com “linfedemas” (vasos linfáticos que incham) nos membros superiores, o que a impedia de levantar os braços e, logo, de dar aulas. Mesmo assim, não conseguiu a reforma por incapacidade.
“Tivemos um caso de um doente de cancro da próstata, incontinente, com hemorragias frequentes, com patologia cardíaca e também com acentuada curvatura da coluna - tudo devidamente comprovado por atestados médicos. [Estava assim] desde os 58 anos e só aos 67 conseguiu a reforma... mas por velhice, nunca por invalidez”, conta.
Relata ainda situações em que doentes foram considerados “plenamente capazes para trabalhar, apesar de incontinentes, algaliados, com cânulas na traqueia, sem poder levantar os braços ou mesmo quase sem falar”.
Mesmo assim, garante, na Unidade de Apoio Jurídico do Núcleo do Centro da Liga, a palavra de ordem é não desistir ao “primeiro indeferimento”. A “esmagadora maioria dos indeferimentos não apresenta qualquer fundamentação circunstanciada. Isto é, não faz sequer referência à desvalorização que atribuiu ao doente e porquê. É uma consequência imediata da falta de formação de grande parte dos médicos”, lamenta.
A procura de apoio está a crescer. Em 2016, este serviço que se situa em Coimbra mas não recusa pedidos do Norte e do Sul, concluiu mais de 200 processos e mais de 20% dizem respeito a incapacidade e invalidez.
“É uma lotaria. É um sistema complicado e injusto”, reforça Paulo Silva Pereira, presidente da Associação Todos com a Esclerose Múltipla. O resultado depende de se “ter ou não sorte na junta médica”, considera.
Há sempre a possibilidade de recurso, mas para isso “é preciso que as pessoas tenham dinheiro”, porque devem levar um médico consigo, nota Paulo Pereira. “Eles [Segurança Social ou Caixa Geral de Aposentações] podem dizer que dispensam um médico dos seus, mas isso é como pedir ao inimigo: empreste-me cá um soldadinho”, ironiza. Mas não há casos de pessoas que pedem a reforma sem motivo? “Sim, há pessoas que abusam”, admite.
Casos de morte obrigaram a mudar lei
É preciso recuar dez anos para recordar, como o faz Ana Serrano na sua tese de mestrado, que “o pico de atenção pública” sobre estas questões coincidiu com a denúncia na comunicação social de alguns casos - dois professores com cancro em fase terminal que foram a juntas da CGA e que, considerados aptos a voltar ao serviço, “acabaram por falecer no exercício das suas funções”.
“Foi esta pressão” que conduziu à publicação do decreto-lei n.º 377/2207 - que obrigou as juntas médicas a serem exclusivamente constituídas por clínicos”, o que não acontecia até então (tinham um técnico da SS ou do Instituto de Emprego e Formação Profissional). Apesar desta mudança, a realidade não parece ter-se alterado muito, entretanto.
Hoje, “se um indivíduo tem capacidade para desempenhar as actividades do dia-a-dia, para levantar-se e vestir-se, em teoria pode trabalhar”, sintetiza Ana Serrano, para quem o problema não reside no funcionamento das juntas médicas, mas sobretudo “nas orientações que vêm de cima e nas pressões”.