Após morte nos Comandos, recruta quis desistir e foi preso
Procuradora finalizou acusação e não tem dúvidas de que instruendo, que chegou a fugir, foi preso ou sequestrado. Entre os acusados há 19 militares. Hugo Abreu e Dylan da Silva morreram no curso 127 em Setembro do ano passado.
O comandante do Regimento de Comandos, coronel Dores Moreira, vai ser investigado pelo Ministério Público junto do Tribunal Da Relação de Lisboa. Em virtude da sua patente, a procuradora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, Cândida Vilar, que liderou a investigação às mortes de Setembro de 2016 nos Comandos, decidiu ordenar a extracção de certidão para aquela instância superior abrir inquérito-crime ao oficial estando em causa três crimes. Um deles está relacionado com a prisão ilegal de um recruta que na manhã seguinte à morte de Hugo Abreu quis desistir do curso.
Dores Moreira surge referido no âmbito da acusação deduzida nesta terça-feira por Cândida Vilar contra 19 militares no âmbito do processo relativo às mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva. Todos comandos, são acusados de crimes de abuso de autoridade por ofensas à integridade física, que nalguns casos são simples ou graves. Dos 20 arguidos, só a enfermeira Isabel Nascimento não foi acusada. Sete são acusados pelo crime de abuso de autoridade por ofensas à integridade física, previsto no Código de Justiça Militar, crime agravado pelo resultado: a morte.
São eles o director do curso, tenente-coronel Mário Maia, o comandante de formação (responsável por todos os instrutores) capitão Rui Passos Monteiro, o capitão-médico do curso Miguel Onofre Domingues, o enfermeiro, sargento João Coelho, o comandante e o encarregado da instrução do grupo de graduados – no qual estava Hugo Abreu – , o tenente Hugo Pereira, sargento Ricardo Rodrigues e o comandante do grupo em que estava Dylan da Silva, o tenente Miguel Almeida.
A procuradora nota que embora não haja indícios que permitam apontar para “o homicídio doloso” de Hugo Abreu e Dylan da Silva, “há indícios abundantes de terem sido cometidas ofensas à integridade física dolosas” e “também há prova” para imputar as mortes “a essas ofensas à integridade física, no plano objectivo, e aos militares que supervisionaram as provas ao nível subjectivo”, estando acusados por crimes para os quais se prevêem penas de oito a 16 anos de prisão efectiva.
Três dias depois decidiu fugir
Quanto a Dores Moreira a investigação passa agora para um procuradora junto da Relação. Por ser coronel, o DIAP não o pode investigar. Mas Cândida Vilar já explica nesta acusação o episódio pelo qual o considera também responsável.
O instruendo do Curso n.º 127 dos Comandos pediu então, no Campo de Tiro de Alcochete, a um dos instrutores responsáveis do seu grupo para desistir. Este disse-lhe que o comandante de formação tinha de ser informado e que até lá ele tinha que permanecer na instrução. Não foi o único que quis desistir mas foi aquele que correu riscos para o fazer, de acordo com o Ministério Público.
Passaram três dias e na noite de terça-feira, o soldado de 21 anos decidiu fugir, por um buraco na rede ao lado do portão de saída. Passava das 22h. Saiu sem documentos e sem telemóvel.
Foi a pé até à estação do Cacém, onde apanhou um comboio, depois um autocarro até à casa dos pais, onde chegou de madrugada. Antes disso, o comandante de formação já telefonara aos pais ameaçando considerá-lo desertor.
O soldado decidiu voltar, com a certeza de que iria pôr fim à sua participação no curso, segundo o próprio e como consta do seu auto de inquirição, enquanto testemunha, no processo conduzido pelo DIAP e pela Polícia Judiciária Militar (PJM). No regresso à Carregueira, o comandante de formação colocou-o sozinho numa caserna, onde não podia falar com ninguém.
"Em regime de prisão" ou "de sequestro"
Cândida Vilar considera que o soldado “ficou em regime de prisão, ou pelo menos de sequestro, sem qualquer fundamento” e responsabiliza o comandante do Regimento de Comandos. A procuradora lembra que “depois da morte de Hugo Abreu [na noite de 4 de Setembro] (…) muitos dos formandos pretenderam desistir do curso” mas tal não lhes foi permitido “sendo mesmo obrigados a permanecer no curso”.
O soldado “era levado como se fosse um preso para as refeições, acompanhado por um graduado” e “no refeitório era colocado num canto sozinho e virado para a parede”. Esteve assim três dias. E só na semana seguinte, deixou o regimento e o curso. No auto de inquirição, com data de Fevereiro de 2017, o soldado disse que desistiu porque “não gostou do que viu na Prova Zero”. Nesse primeiro dia da prova e do curso, foi empurrado para cima dos colegas que já tinham sido atirados para as silvas, como castigo por pedirem água ou não aguentarem o que lhes era exigido. Ao ser empurrado para baixo, ao pontapé, teve medo de provocar lesões no colega sob ele.
A magistrada conclui que “no início da Prova Zero, os formandos foram confrontados com comportamentos profundamente violentos dos formadores e só o medo da prática de comportamentos ainda mais violentos (…) do director do prova, do comandante de companhia e até da equipa sanitária – médico e enfermeiro – justificou que os formandos tenham permanecido durante a noite do dia 4 de Setembro de 2016, no Campo de Tiro de Alcochete”, já depois da morte de Hugo Abreu.
Falsificação e insubordinação
A certidão com vista à abertura de uma investigação criminal do responsável máximo dos Comandos é relativa também a um alegado crime de falsificação de documentos (no âmbito do Código Penal) e insubordinação por desobediência (previsto no Código de Justiça Militar). A primeira destas diz respeito à entrega à investigação do DIAP de um guião da Prova Zero que indicava que os instruendos poderiam beber até cinco litros de água por dia, quando na verdade o guião em que se basearam os instrutores foi o de cursos anteriores que indicava que o limite seriam os três litros.
A confirmar-se, a falsificação de documento teria por objectivo responsabilizar os instrutores e responsáveis do curso e não os altos oficiais, como o comandante Dores Moreira pelo racionamento de água que causou desidratação profunda nalguns instruendos, entre os quais Hugo Abreu e Dylan da Silva.
A outra situação – de alegada insubordinação por desobediência – surge da confirmação dos investigadores de que a instrução prosseguiu no dia seguinte à morte de Hugo Abreu, quando o comandante das Forças Terrestres, general Faria de Menezes afirma, num depoimento escrito dirigido à procuradora e aos investigadores da PJM, que deu ordem nessa noite para a instrução ser suspensa.
Essa informação não é confirmada pelo médico que substituiu o capitão-médico, e que diz ter participado na reunião referida pelo general Faria de Menezes, em que este, contudo, nunca teria dado ordem para se parar a instrução e os exercícios com os instruendos que não estavam na enfermaria. Apenas teria perguntado a opinião dos presentes.
A procuradora também determinou que fossem extraídas certidões com vista à abertura de uma investigação criminal a alegadas agressões nos Cursos n.º 123 e n.º 125, realizados em 2014 e 2015. Foram então apenas abertos processos de averiguações internos, arquivados por decisão do coronel Dores Moreira, comandante do Regimento dos Comandos.