Twin Peaks: fomos ao inferno e voltámos — e foi maravilhoso
Twin Peaks é uma ignição e um lugar. A televisão e aquele Noroeste Pacífico nunca mais foram os mesmos. Está a acontecer outra vez, na televisão e na região dos abetos que sussurram e dos anões que dançam. Há novo Twin Peaks e nova atracção pelo Norte americano. Floresta dentro.
“Na minha famosa imagem, morta, David pôs, à mão, todos os grãos de areia na minha cara e brincou com o plástico como se fosse um ramo de flores.” David Lynch, cientista louco do improviso, adora os seus “acidentes felizes” que originam assassinos paranormais, anões e gigantes, mas compôs meticulosamente a cena do crime. Criou uma imagem que perdura, um fotograma tanto do Noroeste Pacífico americano como da televisão. Ambos nunca mais foram os mesmos. Twin Peaks ressuscita agora, 27 anos depois de uma estreia que foi uma chama de ignição.
A imagem é a de Laura Palmer azulada, descoberta na cidade do estado de Washington indissociável do seu nome — e da ficção e criação que no início da década de 90 saíram do nevoeiro chuvoso e das florestas frondosas da região para o mundo. E Sheryl Lee adorou ser cadáver. A actriz que interpretou a adolescente “morta, embrulhada em plástico”, as primeiras palavras ouvidas em Twin Peaks, deitada na margem do rio, “podia ser uma esponja e absorver tudo”, como recordou ao The Guardian em 2010. E tudo era muita coisa, que a história guardaria com deleite nas peculiaridades de Twin Peaks e seus autores (Mark Frost, saído de A Balada de Hill Street, é o seu co-autor, o homem que torna as suas e as ideias de Lynch em guiões) e com a firmeza de quem desenha uma linha na areia. Twin Peaks é uma fronteira narrativa e artística, cheia de defeitos e sublime ao mesmo tempo, e é um lugar aonde agora o mito volta para tentar voltar a ser (in)feliz.
Depois da primeira hora de Twin Peaks, edição de 2017, pensa-se na obra da artista plástica Louise Bourgeois. Porque fomos ao inferno e voltámos — e foi maravilhoso. Ou qualquer coisa como isso. Reencontramo-nos com velhos amigos, mergulhamos no abismo das diferentes paisagens, perdemo-nos nas novas caras Lynch. Para (tentar) perceber o que é esta hora de televisão hoje, é preciso recuar no tempo.
As provas não são meramente circunstanciais — Twin Peaks é mesmo basilar. Naquele mês de Abril de 1990 nos EUA, e a 22 de Novembro de 1990 na RTP, a fronteira entre TV e cinema foi apagada. Parecia uma série de crime, ou uma novela sobre os amores e segredos de uma comunidade de flanela e cerejas, até um whodunnit porque a pergunta “Quem matou Laura Palmer?” se tornou um slogan de uma era. Mas em Twin Peaks, e em torno de Laura Palmer, reuniam-se uma mulher que falava através de um tronco, um polícia que não parava de chorar, uma sedutora que enrolava pés de cereja com a língua e um submundo de crime, prostituição e de sobrenatural em tudo surreal. O agente infiltrado, o homem da cidade que nos levava para a floresta na fronteira norte da América e do Pacífico era Dale Cooper, um Kyle MacLachlan enérgico, obcecado com comida e com o inevitável “damn good coffee”, desconcertante e intuitivo. O seu deslumbre com a paisagem, as montanhas e as árvores sussurrantes indiciavam logo a alteridade daquele território, a distância entre nós e aquele espaço. Lá voltaremos, neste texto e no domingo, dia 28, quando a “nova Twin Peaks” como os autores lhe chamam sem nada revelar sobre ela, se estrear às 22h no TVSéries.
MacLachlan trabalhara com Lynch em Duna (o filme em que o realizador diz simplesmente que se vendeu), mas depois da série nunca mais filmaria com o autor de Eraserhead. Nunca saiu de 1990-91. “Para o David, sou o Cooper. Sou o Cooper e vivo em Twin Peaks”, disse agora ao Los Angeles Times. Dois anos depois de Veludo Azul (1986), convencido por um agente a tentar a TV, Lynch começou a trabalhar numa série com o amigo Frost. A ideia inicial foi só “uma rapariga é encontrada morta”. Quando, em 1990, na esteira de dramas criminais como Crime, Disse Ela, e de comédias como Cheers — Aquele Bar, Twin Peaks aterra no horário nobre de um canal generalista, a ABC, o abalo foi sentido a quilómetros de distância. “David Lynch vem para a televisão? Os doidos vão tomar conta do hospital psiquiátrico!”, recorda Kyle MacLachlan no The Guardian em 2010.
Abdicava do arco narrativo convencional, a intriga era serpenteante, as personagens eram compostas e numerosas, os diálogos sobre donuts e os abetos-de-douglas tinham um humor especial com sabor a peixe no coador do café. Tinha mitologia e era lynchiano. Mas aos muitos motivos do padrão Lynch — a sensualidade, a inocência corrompida, os códigos de cor, as personagens excêntricas, os ambientes sonoros perfurantes — juntavam-se dois ingredientes fundamentais: o que é familiar ao espectador, nas lágrimas excruciantes da mãe de Laura Palmer e nos romances proibidos debaixo do tapete da comunidade, e o que é surrealista. Os duplos, outro símbolo favorito de Lynch, existem em Twin Peaks não só com as duas personagens interpretadas por Sheryl Lee, homenagem a Vertigo de Hitchcock, mas também no mundo de sonhos e realidade em que há uma White Lodge e uma Black Lodge, o lugar dos assassinos e do anão que dança, um Man From Another Place.
É aqui que entram em cena algumas curiosidades: Lynch teve a sua revelação com uma visão da icónica sala vermelha nos sonhos de Cooper e foi ela que tornou Twin Peaks na novela surrealista que é; o fantasmagórico Bob não existia na história, era só um aderecista de cabelo comprido, Frank Silva, que apareceu num plano por acidente e que Lynch catrapiscou para o seu mundo; um dia, Lynch telefonou a Frost e disse: “Mark, acho que há um gigante no quarto do Agente Cooper”. E ele respondeu-lhe: “OK…”. E seguiu. A primeira temporada de Twin Peaks, oito gloriosos episódios, foi assim. Quando, no episódio final da segunda temporada, Laura prometia a Cooper vê-lo 25 anos depois, isso não encerrava mesmo a possibilidade de voltarem, um quarto de século passado, à televisão. Os autores negam-no. Mas o diminuto Man From Another Place foi testemunha, naquela sala vermelha, de que o acontece em Twin Peaks não fica em Twin Peaks. Transpira para o mundo.
“Aprendi muito cedo que era sempre melhor ser muito receptivo para seja o que for que possa borbulhar e vir à tona do subconsciente de David”, admitiu Mark Frost à Variety. Curiosidades e improvisos são o processo criativo de David Lynch. “Esperava-se que a televisão nos fizesse sentir confortável e isto não era sobre estar confortável. Isto era sobre outra coisa”, descrevia há dias MacLachlan no The Guardian. Lynch fala: “Há aulas de guionismo em que reduzem as coisas a fórmulas, mas não há regras, não deveria haver regras”.
O público embarcou. O primeiro episódio teve quase 35 milhões de espectadores. Numa altura em que o gravador de vídeo era a única hipótese de rever um programa e as conversas de viva voz a forma mais imediata de trocar ideias sobre a nova sensação da cultura pop, vendiam-se cassetes VHS a 20 dólares com os 90 minutos do primeiro episódio. A realizadora Penny Marshall fazia festas de visionamento porque nunca tinha visto nada tão belo na televisão; reza a lenda que Mikhail Gorbachov, espectador como Isabel II, pediu ao Presidente George Bush para lhe dizer quem era o assassino; a Rua Sésamo fez a sua versão, Twin Beaks. A magnífica banda sonora de Twin Peaks saía de carros, de lojas, uma cascata.
“O que raio é aquilo?”
O conforto daquela televisão era o da boa comédia de Cheers, era o da novidade de Os Simpsons, o sofá de Cosby Show, a banalidade de Obras em Casa e a voz estridente de Roseanne. Em Portugal, só com dois canais, via-se Herman José na Roda da Sorte, as séries Os Melhores Anos e EuroNico ou Agora Escolha, com TV Rural ainda no ar e cinema semanal nas sessões da Lotação Esgotada. Antes tinham existido Twilight Zone, Hitchcock Apresenta e O Fugitivo, mas se houve Ficheiros Secretos, Perdidos, True Blood, Hannibal, Buffy ou Veronica Mars, e se hoje há Legion, Mr. Robot, Stranger Things, American Horror Story ou True Detective, isso deve-se ao alçapão para o nosso subconsciente colectivo (ou será o inconsciente) aberto à traição por Twin Peaks. “Twin Peaks, como lugar, é um substantivo, mas quase se tornou um adjectivo”, resume David Nevis, CEO da Showtime, o canal que traz a série de volta (e deu a Lynch, após uma ameaça de deixar a produção a meio por falta de orçamento, todo o dinheiro e liberdade que queria para fazer Twin Peaks 3).
“Os planos de árvores a ondular ao vento, por exemplo. Acho que as pessoas nunca tinham visto isso na televisão de sinal aberto, só as árvores a ondular”, disse David Chase, autor de uma pequena série chamada Os Sopranos, ao Vulture no 25.º aniversário de Peaks. “O que raio é aquilo?”, perguntou-se na altura. Anos mais tarde, Tony Soprano, um dos difficult men que protagonizavam a televisão de ouro, afirmava-se como filho da revolução de qualidade operada nos anos 1990 na TV — os seus sonhos são dos momentos mais memoráveis da série de Chase.
Aquilo era, além de dois autores a trabalhar sem rédeas — “artistas a trabalhar próximo das suas mentes subconscientes, a escrever e a realizar e a produzir muito da mesma maneira que Cooper tomava muitas das suas decisões de investigação”, como descrevia há dias o crítico Matt Zoller Seitz no site Vulture — um lugar. Um espaço único, tão único que de repente toda a América (e parte do mundo que a consumia) queria um pedaço dele. O sortilégio do Noroeste Pacífico abatia-se sobre a cultura.
Northwest noir
“Não sei como explicar isto, mas por mais que Twin Peaks pudesse ser surreal, e por mais peculiar que pudesse ser, mesmo assim para mim era mais parecido com a vida real do que as séries costumeiras de televisão. Para mim, sempre foi importante sentir a geografia de um lugar”, continua Chase. Na altura, pensou: “Acredito nesta cidade na floresta, na terra da madeira, em Seattle. Além disso, a série era visualmente bela, e acho que muita da televisão não o era na altura”.
Mark Frost, que em 2015 editou The Secret History of Twin Peaks, insiste que esta é uma série sobre a cidade. “Uma cidade normal, com um mistério, e mistérios dentro de mistérios. É um lugar real, mentalmente, mas não é um lugar real”, diz, por seu turno, o cifrado Lynch ao The New York Times. O realizador não considera que os 30 episódios que deu ao mundo tenham um sentido mais profundo sobre a cultura americana, embora o cineasta pareça adorar tanto a beleza das mulheres tristes — “Gosto de raparigas que choram”, disse à GQ — como exibir o negativo da fotografia superficial da América.
Um motivo próprio de Twin Peaks, e que é parte do padrão do momento em que nasceu, é o Noroeste Pacífico. No nevoeiro pós-Reagan e na atmosfera de chumbo das últimas tensões da Guerra Fria, a série ia chamar-se Northwest Passage (o título do episódio-piloto) e era um de vários sinais saídos do Noroeste dos EUA, da finisterra mais a norte, do estado de Washington e, logo ali acima da Califórnia, do Oregon e dos vizinhos Idaho e Montana. A biografia de Lynch diz singelamente “escuteiro, Missoula, Montana”. Mergulhou nos bosques, na humidade e no feitiço da região, de onde saiu a música definidora da década — o som do grunge, de Kurt Cobain nascido em Aberdeen, Washington, e ícone geracional de Seattle (e fã de Twin Peaks), cidade também de Thomas Pynchon, Bruce Lee e Jimi Hendrix —, e onde muita da cultura da época parecia fazer-se. Gus Van Sant e My Own Private Idaho (1991), Douglas Copland e os Microservos (e muitas outras obras passadas no Noroeste Pacífico), Matt Groening de Os Simpsons a nascer e crescer em Portland, Oregon. Até as filmagens de Northern Exposure (1990-95), a série sobre o Alasca, foram perto do vale de Snoqualmie, que, com a cidade de North Bend, compreendia os locais de rodagem de Twin Peaks.
“De repente, personagens que há muito fazem parte da paisagem no Noroeste Pacífico”, relatava em 1991 o escritor de Seattle Timothy Egan no The New York Times, os “lenhadores, os solitários do ar livre e os polícias que comem donuts são a matéria de alguns dos trabalhos mais ousados no cinema e televisão”. Os seus autores “têm em comum, além da geografia, uma visão do mundo decididamente descentrada”, criada “sob os céus cinzentos, longe dos centros de ambição da América” — “uma visão que combina a meteorologia e a loucura e que produz uma espécie de Northwest noir”. Para Egan, “a chuva acrescenta profundidade às personalidades sombrias.”
Kyle MacLachlan, por exemplo, é de Yakima, no estado de Washington. Ao entrar em Twin Peaks, incorpora o homem dominado pela natureza, isolado do seu poder urbano. Tem de saber que árvores são aquelas, como quem tenta saber o que há na água na Suécia para produzir tantos romances policiais de qualidade. Está enfeitiçado. “São qualquer coisa!”. O encanto não se quebra. “Cheirem-me estas árvores. Cheirem-me aqueles abetos-de-douglas”, repete mais à frente. Ele representa, no fundo, o que James Lyons considera, em Selling Seattle: Representing Contemporary Urban America (2004), a fetichização do Noroeste. Nas árvores, nas camisas de xadrez, uma espécie de “natureza design”.
Nos últimos anos, MacLachlan foi o mayor da série Portlandia, uma construção de ironia sobre a capital hipster, a nova tribo do século XXI, do Noroeste Pacífico. Carrie Brownstein, co-autora de Portlandia e guitarrista e vocalista da banda Sleater-Kinney, fundada em 1994 em Olympia, Washington, descreve no The New York Times o que é isso de ser do Noroeste Pacífico: “Há uma afinidade, uma sensação de estar na ponta do país, a última paragem nesta noção potencialmente falsa do que é o sonho americano”. No novo Twin Peaks, os contrastes entre esse abismo geográfico e as mecas do sonho americano vêm ao de cima, com os mochos a ver mais coisas, porque o mundo hoje é ainda maior.
Nos “bosques amistosos” da região, que “ainda assim contêm mistério”, como Lynch disse à Rolling Stone, mora parte da atracção, e continuou a dar frutos. Nos anos seguintes, Ficheiros Secretos e Frasier continuavam na região com Michael Crichton, que escrevia Revelação (1993) para depois se tornar um filme também por ali. Mais recentemente, a saga Crepúsculo e as séries The Killing e Riverdale são passados no Noroeste Pacífico, usando as mesmas brumas e fantasmagoria para diferentes fins. Mas há sempre esses símbolos, o adolescente, o lugarejo perdido na floresta — na última até um corpo de um adolescente dá à costa num rio da cidade homónima, cheia de batons vermelhos e encenações operáticas.
Twin Peaks era “uma celebração do místico no meio do orgânico da floresta do Noroeste”, dizia o seu director de arte, Richard Hoover. E “parte da nossa atracção para Twin Peaks era a sua localização abertamente intersticial”, defende a académica Linnie Blake no seu ensaio Trapped in the Hysterical Sublime: Twin Peaks, Postmodernism, and the Neoliberal Now, publicado em Return to Twin Peaks (2016). Não só no espaço, terra de fronteira e de fim no mar, mas também “entre vida e morte, bem e mal, passado e presente”, exemplifica. “No período antes de o grunge pôr Seattle no mapa da cultura de massas, o Noroeste Pacífico era território desconhecido para muitos de nós. As montanhas envoltas em névoa, os rios preguiçosos, os campos madeireiros e a chuva ofereciam tanto uma paisagem específica como a sensação de nenhum sítio em especial. Era algo que ficava entre, a meio. E se a sua localização era intersticial, o mesmo pode ser dito do seu período.” Twin Peaks era de todo o tempo e de tempo nenhum, com o motociclista James, um James Dean dos anos 90, Audrey como pin up angelical dos anos 1940, Bobby Briggs e a sua farpela entre o greaser dos anos 1950 e o grunge. Esse tempo voltou a mexer connosco, e está a acontecer outra vez.
Génio ou idiota
Esta não era uma série de massas, mas o contexto tecnológico e televisivo tornaram-na uma refeição de culto que as massas provaram.
Hoje, “vai ser muito diferente”, disse Mark Frost à Variety. Tendo alterado a forma como se contam histórias na televisão, nomeadamente no que toca à fotografia, a criação de Lynch e Frost não vai ser a excepção que foi em 1990. E não será o desaire de 1991, quando a segunda temporada ficou sem Lynch. E sem rumo. E se tornou tão “estúpida e pateta”, “ridícula” mesmo, que Lynch deixou de ver, como admitiu ao The New York Times. A ABC, com apoio forte do actual CEO e rei Midas da Disney, Bob Iger, tinha-lhe dado espaço para fazer a série, mas à medida que as audiências caíam exigiu a morte da galinha dos ovos de ouro (resolver “Quem matou Laura Palmer?”) logo no início da segunda temporada.
Foi a resposta “que matou Twin Peaks”, como disse o realizador aos jornalistas em Janeiro. Lynch nunca quis sequer responder à pergunta. Entretanto já tinha voltado os olhos para outro projecto — Coração Selvagem (1990) —, numa altura em que as atenções dos espectadores se voltavam também para outra novidade no horário nobre, a Guerra do Golfo em directo na CNN. Voltou só para filmar o episódio final, que produz o cliffhanger “o que aconteceu a Dale Cooper”, e agora quer acabar o que começou.
O filme mal-amado Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, que será reposto nos cinemas portugueses a 1 de Junho, é essencial para a intriga da nova temporada, diz o realizador, que desta vez realiza os 18 episódios (a que chama partes) e tem um elenco de mais de 200 actores. Quase todo o elenco original regressa (Lara Flynn Boyle e Joan Chen não voltam, Frank Silva morreu em 1995) e estrelas como Naomi Watts, Tim Roth, Jim Belushi, Jennifer Jason Leigh, Monica Belluci, Michael Cera ou Laura Dern e os músicos Trent Reznor, Eddie Vedder e Sharon van Etten preencherão muitos papéis.
Lynch, tal como disse ao The New York Times em Abril, continua a sonhar com as personagens de Twin Peaks. “São como velhos amigos. Pensamos neles de tempos a tempos e questionamo-nos como estão.”
Estão agora num novo mundo. A televisão dos últimos 30 anos é herdeira de Twin Peaks e há novos inquilinos a ocupar o seu lugar original. Pulverizada em centenas de canais e suportes, do streaming à televisão em directo, a programação do audiovisual é um cacho de nichos, agarrados a um tronco de televisão generalista ainda mais convencional, em que há séries de terror e fantasia na lista dos mais vistos e premiados, um mundo de poderes sobrenaturais, criaturas alienígenas, homicidas de culto, narradores pouco fiáveis e dramas em que várias camadas de realidade colidem como o Bates Motel de Carlton Cuse, que assume que foi “roubar a Twin Peaks”, ou o cluster de nostalgia que é Stranger Things. Até há um “Twin Peaks com rappers”, como Donald Glover descreve a sua comédia Atlanta.
Houve e continua a haver muitas más imitações, mas o que Lynch fez teve efeitos que se sentiram dez, 20 ou quase 30 anos depois. Matthew Weiner, autor de outra obra aclamada de toques vintage e momentos oníricos que foi Mad Men, percebeu em Twin Peaks o que era possível na televisão. (Lynch, que não via e não vê televisão, também gosta de Mad Men — e de Breaking Bad.) O splash que Lynch fez ao lançar-se do cinema para a piscina televisiva em 1990 também já não é novo — Lynch constata na Rolling Stone que “o novo [cinema] art house é a televisão por subscrição”. Na última década, a televisão encheu-se de cineastas, entre eles os autores do cinema americano dos anos 90 como David Fincher a fazer House of Cards, Soderbergh em The Knick ou Baz Luhrmann em Get Down e Todd Haynes em Mildred Pierce. Ou Woody Allen, Scorsese, Van Sant. Twin Peaks hoje “não será uma presença singular”, resume a crítica de televisão Maureen Ryan.
Foi uma das primeiras séries a serem discutidas online, nos primórdios da Web, por exemplo, e nos últimos anos, os podcasts, as recapitulações, os gifs, os livros, as reedições, o streaming e a teoria académica mantiveram-na viva e trataram-na como se, no fundo, ainda estivesse no ar. Lynch fala das 18 partes da terceira temporada de Twin Peaks como um filme, como se faz muito hoje na televisão que quer ser levada a sério, e Frost rejeita que este retorno seja uma trip nostálgica, como se faz muito hoje na televisão das reanimações de corpos do passado. Chegou sem nada se saber sobre ela. “Quanto mais sabemos, mais isso retira à experiência total”, explica o autor à Hollywood Reporter.
O que é algo lynchiano, esse qualitativo que, 40 anos passados sobre Eraserhead, ainda se constrói — “Um tipo particular de ironia em que o muito macabro e o muito mundano se combinam de forma a revelar a perpétua inclusão do primeiro no segundo”, lê-se na história de David Foster Wallace sobre a filmagem de Estrada Perdida. “É difícil perceber se é um génio ou um idiota”, escreveu o autor de A Piada Infinita, que viu o realizador pela primeira vez nas filmagens quando David Lynch “fazia chichi numa árvore”.
Lynch não filma senão curtas desde 2006, quando fez Inland Empire, mas continua uma figura lendária, embora mais permeável a críticas. “Ele quer sempre dizer-nos quem somos verdadeiramente”, diz Mel Brooks, produtor de O Homem Elefante. “Precisamos que David no-lo diga. Quem é que somos, na verdade? Parte animal, parte empresário, parte doido. Ele sabe.” Na nova Twin Peaks, a certa altura alguém importante diz aquilo que nunca sentimos verdadeiramente em qualquer dos planos em que Lynch nos coloca. “Compreendo.”