Crítica: Twin Peaks é futuro, ou é passado?
O regresso da série de culto de David Lynch é tudo o que esperávamos e nada do que esperávamos.
Numa das cenas da primeira das 18 novas horas de Twin Peaks, uma rapariga está curiosa por ver o que se esconde por trás da porta blindada de um arranha-céus nova-iorquino, onde trabalha o rapaz a quem vem entregar café. (Presume-se que seja damn good coffee.) Nós, espectadores, somos como essa rapariga. Queremos saber o que está por trás da porta, só porque não podemos ver lá para dentro. Se soubéssemos o que lá está, contudo, continuaríamos curiosos?
A resposta, claro, dependerá de cada espectador. Mas que não se acuse David Lynch de não fazer o seu melhor para nos manter curiosos: a première do regresso de Twin Peaks, exibida no domingo no canal americano Showtime (e da qual a primeira hora será exibida em Portugal no canal TVSéries no próximo domingo, 28), são 112 minutos de portas fechadas que se vão abrindo para revelar… outras portas fechadas. Vamos reconhecendo situações, personagens, actores da série original (Kyle MacLachlan e Sheryl Lee à cabeça, mas também Kimmy Robertson e Harry Goaz, a secretária Lucy e o adjunto Andy; Richard Beymer e Russ Tamblyn, Ben Horne e o Dr. Jacoby; Catherine Coulson e Michael Horse, a Senhora do Tronco e o adjunto Hawk), mas vamos também encontrando novas pistas narrativas, como um catálogo de possibilidades para o que aí vem. Um mostruário de paletas ou de cores que, para já, fazem sentido apenas como sketches, cenas individuais, pontos de partida. Mesmo quando parecem existir conexões narrativas, e quando a história de Twin Peaks 2017 se cruza com a história de Twin Peaks 1990, as coisas não ficam mais lineares, mais resolvidas ou, sequer, mais compreensíveis.
Matt Zoller Seitz tinha razão na sua peça para a Vulture ao dizer que só por milagre Lynch faria com Twin Peaks uma versão light do seu cinema progressivamente mais esotérico e opaco, ainda por cima quando foi a série original a cristalizar o adjectivo “lynchiano”. O que se percebe é que Lynch remodelou os interiores e redecorou a fachada, recorrendo a colaboradores regulares de longa data (o director de fotografia Peter Deming, o compositor Angelo Badalamenti, o montador Duwayne Dunham), mas sem tocar nos alicerces e na estrutura fundamental da casa. Dale Cooper continua preso no interior da Sala Vermelha e o seu duplo maléfico anda por aí, a Senhora do Tronco continua a transmitir mensagens crípticas ao adjunto Hawk, mas agora há um director de escola do Dakota que parece ter morto alguém num sonho que se tornou real, uma caixa de vidro que serve de portal para outra dimensão, planos de paisagem filmados com drones. E nada disto é um spoiler porque não fazemos ideia do que se está aqui a passar nem o que é que isto tem a ver com o resto.
E de repente damos por nós outra vez hipnotizados pela sábia mistura de imagens e sons que Lynch gere de modo absolutamente extraordinário (o design de som é do próprio realizador, a música de Angelo Badalamenti é usada de modo esparso). A única coisa que diferencia Twin Peaks do Lynch no grande ecrã é o tempo, que o realizador tem aqui para dar e vender, ao contrário das limitações de um filme de duas horas. No resto, Twin Peaks é tão “cinema” e tão “arte” e tão “Lynch” como esperávamos que o fosse. Contraditório, sim: porque isto não é cinema e não é televisão e é as duas coisas ao mesmo tempo; porque de Lynch esperamos o inesperado, e porque ainda assim Twin Peaks não é o que esperávamos; reencontramos na nova série um élan de paixão, de vitalidade, que parecia faltar em Mulholland Drive e INLAND EMPIRE, um prazer reencontrado em filmar estes tableaux que remetem, sistematicamente, para tudo o que Lynch fez antes (uma panorâmica que evoca Duna, uma “fuga psicogénica” à Estrada Perdida, uma invocação visual de Veludo Azul). Uma súmula, se quiserem; um mistério, também, porque não sabemos o que aí vem.
Certeza, só uma. O regresso de Twin Peaks é tão estranho em 2017 como a série original o foi em 1990; continua a não ser igual a nada que esteja hoje na televisão, só que de outro modo, diferente contudo semelhante. Não faz sentido? Não faz mal: no mundo de Lynch tudo faz sentido. No céu tudo é perfeito, já se cantava em Eraserhead.