Justiça e corrupção: imobilismo ou mudança?
Sem uma resposta forte das políticas públicas e, na medida das suas responsabilidades, do Ministério Público e da magistratura judicial, os casos emblemáticos não deixarão de aumentar o descrédito e as representações negativas sobre a justiça.
O apelo do Presidente da República à criação de um pacto para a justiça e as recorrentes chamadas de atenção para o "desconforto" com a justiça contribuíram para a mobilização dos atores do sistema na resposta ao repto do Presidente (na semana passada os jornais davam conta de que o pacto avança entre os agentes judiciais). Que tipo de ações concretas irão resultar deste movimento? Mais um conjunto de alterações legais? Mudanças de práticas, de articulações e de métodos de trabalho? Não sabemos. Mas, há uma pergunta central que se impõe: o que aprendemos com os erros do passado?
Desde logo, com os falhanços de outras tentativas de pactos: o projeto de Pacto de Regime para a Justiça e Para a Cidadania, do Congresso da Justiça de 2003, e o Pacto da Justiça, de 2006, concretizado no acordo político-parlamentar para a reforma da justiça, celebrado entre o PS e o PSD, que envolvia um conjunto vasto de matérias (justiça penal, ação executiva, mapa judiciário, estatuto dos magistrados, etc.). Analisámos e refletimos, de forma consequente, sobre a avalanche de reformas com que o setor, nos últimos 20 anos, tem sido inundado, maioritariamente com o objetivo último de aumentar a eficiência e a celeridade dos tribunais?
O diagnóstico, expresso no programa do XIII Governo Constitucional, de uma justiça "lenta, ineficaz, excessivamente cara e culturalmente longínqua dos cidadãos" deu o mote para o desenvolvimento, nesse e nos governos que se seguiram, de uma panóplia de reformas (critérios de oportunidade em matéria de investigação criminal, tecnologias de informação, formas alternativas de resolução de conflitos, desjudicialização, mapa judiciário, gestão dos tribunais, alterações processuais, entre outras) com o objetivo, direto ou indireto, de resolver os atrasos da justiça e o congestionamento dos tribunais. Apesar daquelas reformas, hoje, os sintomas são os mesmos de há 20 anos: morosidade e ineficiência, ainda que não atinjam de igual modo todos os processos. É que não basta estarmos de acordo quanto aos sintomas. É preciso, em primeiro lugar, diagnosticar corretamente as suas causas e compreender em que medida são causas estruturais ou conjunturais. Tomemos o exemplo da corrupção.
Há duas décadas que se vêm sucedendo na ribalta mediática casos de criminalidade económico-financeira, incluindo de corrupção, envolvendo a elite política e financeira do país. O caso BES/Ricardo Salgado e o caso Sócrates confirmam o inequívoco sinal da democracia portuguesa de perda de impunidade de quem tem poder e dinheiro. Mas, além desse enorme salto democrático, que outras reflexões foram capazes de introduzir no debate e, a partir delas, que mudanças estruturais desencadearam? Temos, hoje, um combate sistemático e eficiente, à corrupção? A todas as denúncias e alertas, como, por exemplo, do Tribunal de Contas?
O primeiro sinal negativo é dado pela perceção dos cidadãos. De acordo com um estudo da organização Transparency International, cerca de 70% dos portugueses encaram a corrupção como um problema sério e a maioria considera ineficaz o seu combate. Mas, esta perceção não tem tradução nos indicadores estatísticos, quer no número de inquéritos abertos (que maioritariamente terminam arquivados), quer, sobretudo, nas acusações e condenações com trânsito em julgado. As estatísticas oficiais da justiça mostram que, além da tradicional morosidade dos processos de inquérito deste tipo de criminalidade, desde 2013, o número de arguidos acusados e condenados por corrupção nos tribunais de primeira instância tem vindo a decrescer: em 2015, foram 45 os arguidos e condenados 25.
É, por isso, crucial, em primeiro lugar, que se avalie, com recurso a metodologias adequadas: se há ou não na sociedade portuguesa uma "excessiva suspeição"; quais as razões que levam a que haja tantos arquivamentos e tão poucas condenações; e porque demoram tanto tempo os processos de inquérito. O sistema judicial tem que endogeneizar o princípio da avaliação como instrumento central para a qualidade do debate e para a assertividade das políticas públicas.
Em segundo lugar, é fundamental não cair na estratégia de alterações avulsas, sobejamente evidenciada pelo elevado número de vezes que os principais códigos foram alterados. O debate não pode perder de vista uma perspetiva sistémica e integrada, que envolva todos os atores com competências nesta matéria, e deve incluir três questões principais: a) amplo programa de formação permanente que, entre outras vertentes, assegure formação específica, incluindo melhores práticas de organização e gestão da investigação deste tipo de criminalidade; b) articulação dos sistemas de informatização dos vários órgãos de investigação criminal e criação de uma rede informática, eficaz e segura, para o inquérito criminal que permita, designadamente, troca de dados, transmissão de expediente e controlo, por parte do magistrado do Ministério Público, da tramitação do processo; c) redefinição da organização da investigação criminal e dos métodos de coordenação e de trabalho, distinguindo a resposta à criminalidade de massa (hoje, sobretudo, crimes rodoviários), à criminalidade de pequena e média gravidade e à criminalidade grave complexa, em especial, à criminalidade económica e financeira.
Sem uma resposta forte das políticas públicas e, na medida das suas responsabilidades, do Ministério Público e da magistratura judicial, os casos emblemáticos não deixarão de aumentar o descrédito e as representações negativas sobre a justiça.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais.