O suicídio assistido e a eutanásia
A relutância em se aceitar a eutanásia ou o suicídio assistido provém, em muitos casos, de os objectores estarem a viver num tempo que já não existe.
Não estou ansiosa por dispor de uma série de leis, de decretos e de portarias sobre a morte. Na realidade, preferiria viver num mundo sem demasiadas regras, mas sei que isso é impossível. O que dantes se fazia por acordo tácito passou a ser analisado nos parlamentos, nos governos e nos tribunais.
Reconheço que, a verificar-se uma reforma na maneira como a lei encara o suicídio assistido e a eutanásia, a percepção da morte sofrerá uma mudança. Enquanto, no passado, havia uma linha que não devia ser ultrapassada – “Não matarás” – podemos estar a chegar a uma situação em que, do ponto de vista moral, já não se sabe onde reside o tolerável e o intolerável.
No Ocidente, as leis foram evoluindo com base na tradição judaico-cristã. Deste ponto de vista, o corpo é o invólucro da alma, o que o tornaria sagrado. Segundo esta concepção, tudo o que acontece aos doentes terminais faria assim parte do desígnio divino. Por outro lado, na versão científica, a morte é algo que acontece a qualquer organismo quando o sistema entra em colapso. Sob este prisma, a morte de um homem é um acontecimento biológico que, na sua essência, não é diferente da de um gato, de um peixe ou de um eucalipto.
Estas duas perspectivas são conciliáveis e médicos há que, sendo crentes, defendem o suicídio assistido e a eutanásia. É aqui que entra a Filosofia. Entre outras coisas, a sua tarefa consiste em detectar o significado da morte, e, com base nele, em fornecer linhas directivas. Podemos olhar os homens como a ciência os vê – como um amontoado de células – reconhecendo todavia que, na medida em que são capazes de julgamento moral, são distintos dos outros animais.
Importa ainda ter em conta a forma como as sociedades evoluíram. A relutância em se aceitar a eutanásia ou o suicídio assistido provém, em muitos casos, de os objectores estarem a viver num tempo que já não existe, quando várias gerações, avós, pais e filhos, viviam debaixo do mesmo tecto, quando não havia ventiladores nem TAC’s nem ressonâncias magnéticas, quando os doentes jamais eram ouvidos pelos médicos. Agradável ou desagradável, esse mundo acabou.
Qualquer revisão das leis que governam o tratamento médico deve ser pensada, não para nos escudar da morte, mas para nos habilitar a ter uma vida digna. É por isso que a relação prolongada doente-médico é importante: só ela permite ao segundo ver o primeiro como uma pessoa e não como um amontoado de linhas numa ressonância magnética. É evidente que, mesmo que o desejássemos, não poderíamos manter as relações que, no passado, existiam entre os doentes, quase sempre ricos, e os médicos, quase sempre de clínica geral. Para o bem e para o mal, o progresso da Medicina alterou tudo. Mesmo assim, convém manter esse laço, sabendo que, em muitas ocasiões, especialmente nas graves, o doente estará diante de um clínico que o vê pela primeira vez.
De acordo com J. S. Mill nenhuma questão, moral ou empírica, pode ser resolvida em absoluto, o que nos obriga a admitir que as nossas respostas deverão ser temporárias, aceitando portanto que possam ser revistas. A verdade, ou mais correctamente, a “maior” verdade – uma vez que, segundo ele, a Verdade nunca poderá ser atingida – surge do conflito entre as opiniões falsas e as verdadeiras (ou, seguindo-o, as mais falsas e as mais verdadeiras). Isto levou-o a defender que nunca se deve suprimir uma opinião, por mais chocante que seja, porque, se o fizermos, nunca chegaremos à mais justa.
É da discussão que nasce a luz. E é sobretudo em questões morais, como esta, que é necessário adoptar uma atitude humilde. Se quisermos chegar a uma conclusão, teremos de aceitar debater com todos, mesmo com aqueles que, por serem fanáticos, mais repulsa nos causam. Espero que, entre nós, a análise deste problema decorra num clima de serenidade.
Socióloga e subscritora da Petição Pública Direito a Morrer com Dignidade