Crise de identidade na Europa
O investimento em investigação e desenvolvimento de todos os países da UE juntos é inferior ao dos Estados Unidos ou da China.
Nem as superlativas declarações na União Europeia (UE) conseguem encobrir alguma desorientação dos seus meios políticos. Comparar as realidades de hoje com os grandiosos objetivos enunciados na Agenda de Lisboa em 2000 evidencia um fosso de inconsistências. Não, a solução para as falhas profundas no “projeto europeu” não é o dogma de que tudo se resolve com mais Europa. Um dos motivos profundos da secundarização da UE no mundo e neste novo século é, precisamente, esse dogma, que cega e diminui a objetiva racionalidade. Os que antidemocraticamente impediram os cidadãos europeus de decidirem, por exemplo, sobre o Tratado de Lisboa e sobre o futuro da UE, detêm uma responsabilidade pelas disfunções atuais.
A Europa é uma causa meritória. Na realidade, é importante promover uma visão estratégica comum dos europeus, mas é triste e perigoso que alguns populistas europeístas tentem instituir (e impor aos cidadãos) um pensamento único sobre aquilo que o futuro da UE deve, ou não, ser.
De resto, a secundarização da União Europeia em múltiplos domínios parece confirmar que o pensamento único europeu não tem sido adequado. O mundo atual é demasiado complexo para a adoção de simplismos conceptuais e políticos. Fanatismos e demagogias que invocam o europeísmo não constituem uma força da Europa. Pelo contrário, indiciam fraqueza e falta de ideias.
A união (não a unicidade) da Europa é uma causa relevante que pode ser prejudicada por aqueles debitam a palavra “europeísta” em cada minuto.
A atual crise económica e financeira humilha a Europa perante o mundo, evidenciando a sua fragilidade num cenário internacional em que o crescimento económico é predominantemente bom. Mas esta crise apenas acentua a visibilidade de problemas que já anteriormente se projetavam. Antes da eclosão desta crise a Zona Euro já era a região do mundo com o mais baixo crescimento económico, enquanto os próprios países em desenvolvimento cresciam a um ritmo triplo do europeu.
O colapso da União Soviética e a desagregação do bloco oriental de países que se lhe associavam agudizaram a perceção de que o alargamento da União Europeia, enquanto espaço integrador, seria estrategicamente importante para ocupar um espaço de influência em implosão, politicamente estabilizador de um arco envolvente do continente e economicamente gerador de novas economias de escala no seio de uma maior comunidade consumidora e produtora. Essa intenção foi materializada.
Todavia, o contexto internacional não é o mesmo do passado em que a Europa governava o mundo. O mundo era eurocêntrico há um século e nos séculos anteriores mas deixou de o ser e os europeus parecem não se ter apercebido desse facto.
A Europa moderna afirmou-se com as consequências da sua revolução industrial. Mas as novas vagas da tecnologia são policêntricas. A tecnologia de ponta do séc. XXI floresce de modo fulminante em países como a China, a Índia e muitos países subvalorizados. A China lidera o mercado mundial das sofisticadas tecnologias da informação desde 2004. No passado, a Europa foi o principal investidor estrangeiro em todos os continentes. Atualmente são nações em desenvolvimento que correm a Europa a comprar património e empresas, com um poder financeiro que a Europa parcialmente perdeu.
Os Estados Unidos, um país relativamente recente e muito menos populoso que a União Europeia, representam apenas cerca de 4% da população mundial mas possuem 17 das 20 melhores universidades do mundo e obtiveram 40% dos Prémios Nobel até hoje atribuídos. O forte predomínio europeu na ciência e na tecnologia esbateu-se há muito. O investimento em investigação e desenvolvimento de todos os países da UE juntos é inferior ao dos Estados Unidos ou da China. Dos 10 maiores fabricantes de telemóveis do mundo seis são chineses e já nenhum é europeu. O maior fabricante mundial de computadores pessoais é chinês. O país que mais utiliza os pagamentos por telemóvel, que se encontram na vanguarda tecnológica, é o Quénia. O mundo está em efervescência criativa e transformadora e os europeus virados para o altar de Bruxelas perdem a noção do que se passa no mundo real. Esse êxtase de liturgia autista é um perigo para todos nós. Enquanto isto não mudar a Europa persistirá em queda relativa.
Como foi embaraçosamente evidente na intervenção armada na Líbia, a capacidade militar europeia é cada vez mais secundária e irrelevante. A implosão financeira na Europa também limita a modernização militar deste continente. Falta coragem nos momentos difíceis, mas falta também a capacidade financeira.
A identidade cultural europeia também se confronta com interrogações. Vivemos num mundo em que a mobilidade transnacional induz interações culturais nem sempre pacíficas. Cerca de 244 milhões de pessoas vivem fora dos seus países de origem, inclusive na Europa. A interação entre mentalidades é irreversível. A integração intercultural já não é só uma opção de consciência mas também um imperativo de coexistência, de gestão económica e de segurança coletiva.
A maioria da população de Roterdão é já de origem estrangeira e nessa cidade é construída a maior mesquita da Europa. Em Granada, na região espanhola que foi governada pelos mouros durante 800 anos e que no passado recente acolheu meio milhão de muçulmanos, abriu a primeira mesquita edificada em 500 anos. Felizmente somos interculturalmente abertos (mesmo perante comunidades que acolhemos mas que nos odeiam) mas não devemos ignorar consequências nem sempre positivas.
A União Europeia confronta-se com múltiplos problemas que lhe causam uma crise de identidade num mundo em mutação que já não controla e que a ultrapassa crescentemente. Talvez os maiores problemas da Europa sejam, afinal, o de ser controlada por um “pensamento único” dogmático de que os cidadãos foram afastados e a falta de compreensão estratégica das dinâmicas que estão a mudar o mundo neste novo século. Mas a sociedade, em geral, está recheada de excelentes elementos, que não chegam pelos corredores partidários mas que conhecem muito bem o mundo e os desafios que se avizinham.
Não, o remédio para tantas disfunções não é o dogmatismo de mais Europa ou da duvidosa Europa acima de tudo. O que falta é libertar a gigantesca capacidade criativa dos cidadãos para reinventar a Europa do futuro, com muito mais inteligência, acuidade estratégica e sensatez.