Covilhã: de cidade-fábrica a campus universitário
Cidade conta com a Universidade da Beira Interior para atenuar Inverno demográfico. Terceiro de uma série de seis trabalhos sobre o desenvolvimento do interior do país.
Quem anda pelas ruas torcidas e inclinadas da Covilhã não escapa à Universidade da Beira Interior (UBI). São perto de 6500 estudantes e mil professores e auxiliares de várias partes do país e de fora dele – sobretudo do Brasil e dos países africanos de língua oficial portuguesa – a agitar o mercado imobiliário, o comércio, a noite. “O campus é a cidade”, diz o reitor António Fidalgo.
Os edifícios estão espalhados. É como se a cidade fosse demarcada pela universidade que, no entender de Fidalgo, tem o tamanho certo para a vida académica não se esgotar nas salas de aula, continuar lá fora, influenciar o resto da cidade, “colocando-a ao mesmo ritmo da academia: boémia no início do ano lectivo, buliçosa em tempo de aulas, tensa nas épocas de exames”.
Não foi só para incentivar a investigação científica que o país criou universidades e politécnicos no interior. Espera-se que sejam pólos de desenvolvimento, fixem pessoas, dotem as regiões de mão-de-obra qualificada, prestem serviços especializados às comunidades, injectem inovação.
Nuno Francisco, director do Jornal do Fundão, nem quer pensar no que seria a região se não houvesse UBI, Instituto Politécnico da Guarda, Instituto Politécnico de Castelo Branco: “Há 30 anos, o futuro era o cabo da enxada, a mina, o litoral ou o estrangeiro.” Graça Rojão, da CooLabora, cooperativa de consultoria e intervenção social, também não hesita: “Gostaríamos que a universidade tivesse uma relação mais intensa com a cidade, mas a Covilhã sem a universidade e sem os recursos humanos qualificados da universidade estaria numa situação muito mais grave.”
A população tem decrescido a um ritmo inferior ao dos concelhos vizinhos. “Há pessoas que teriam saído, se não houvesse universidade. Há pessoas que vêm estudar ou trabalhar, porque há universidade. E alguns dos que vêm, por casamento, emprego ou outro factor, ficam”, enuncia o reitor. Está convencido de que certas empresas não se teriam instalado na região se não houvesse universidade. E que “a fatia mais empreendedora” da Covilhã sai dos seus bancos.
Catarina Nobre é natural de Portalegre e estudou design multimédia na UBI. “Lutei para ficar na Covilhã”, conta a rapariga, de 25 anos. Apaixonou-se por um rapaz da terra. Fustigada pelos problemas de pele, criou uma linha de saboaria artesanal e cosmética 100% natural. Numa formação da CooLabora, aprendeu a lidar com a burocracia e a desenvolver um plano de negócios.
“É fácil fazer os nossos produtos em casa para nós, para a nossa família, para os nossos amigos. Quando vemos que isso tem potencial e não temos apoios, começa uma jornada muito longa”, diz. Foi no programa de televisão Sharks Portugal que captou investidores. Várias portas se abriram: “Oferecemos-lhe um espaço para trabalhar, mas tem de vir para Lisboa.’” Recusou. “Não quero ser mais uma daquelas que abandonam o interior.” Os colegas de curso partiram quase todos. Não encontraram oportunidades por ali. “Eu pedi ajuda. Se não me tivessem ajudado, claro, seria mais uma.”
Os lanifícios continuam a dominar a cidade cravada na falda oriental da Serra da Estrela. Há mil anos que fazem parte do quotidiano. Primeiro, a produção fazia-se à escala da oficina. A partir do século XVII, à escala industrial. As fábricas foram crescendo ao longo das duas ribeiras até a Covilhã se transformar numa cidade-fábrica, como Roubaix, em França, ou Manchester, no Reino Unido. Na década de 70, a indústria começou a cair.
A UBI nasceu sobre essa ruína. Reconverteu parte das fábricas construídas ao longo da ribeira da Goldra – desenvolveu-se a partir da Real Fábrica dos Panos do Marquês de Pombal. Mas no outro lado, na ribeira da Carpinteira, é a desolação feita de alvenaria de pedra e chaminés de tijolo. Ali, recuperou apenas o antigo complexo Ernesto Cruz, onde funciona o pólo IV, e o antigo complexo Roque Cabral, lugar das residências universitárias.
O presidente da câmara, Vítor Pereira, sonha com o dia em que aquelas carcaças industriais terão nova vida. Imagina espaços museológicos, edifícios inteiros dedicados ao coworking, incubadoras. Quem lhe dera haver gente a seguir o exemplo de Francisco Afonso, o proprietário da antiga Fábrica António Estrela, que agora é um laboratório criativo, o New Hand Lab (ver texto neste especial "Repensar o Interior").
A indústria de lanifícios não acabou. A produção já não precisa de mão-de-obra intensiva. Há a Fitcom e as unidades do Grupo Paulo de Oliveira e pouco mais. E essas produzem mais do que as 150 fábricas de outrora e garantem mais de 50% das exportações do concelho. O que acabou, esclarece Vítor Pereira, foi a monocultura.
O turismo cresce. Emerge o sector agro-alimentar. A mina da Panasqueira continua a dar volfrâmio. Há o Data Center PT, um centro de processamento de dados da Portugal Telecom. No Parque de Ciência e Tecnologia, uma incubadora soma 43 empresas, incluindo startups criadas por jovens saídos da UBI. E há o UBIMedical, um centro de investigação para a área da saúde, um fruto da Faculdade de Ciências da Saúde, perto do Centro Hospitalar da Cova da Beira.
A balança comercial até é bastante positiva. “Exportamos 170 milhões e importamos 76 milhões”, gaba-se o autarca. A balança demográfica é que não. Como reequilibrá-la? “Temos de atrair e fixar mais empresas. Estamos a trabalhar nesse sentido. Há uma concorrência muito forte entre municípios.”
Há gente que resiste a todas as marés. Joana Martinho Marques fez licenciatura em Belas Artes no Porto, mestrado em Cenografia em Madrid, voltou à Covilhã e não tem sido fácil arranjar trabalho na área, já chegou a trabalhou num call center. “A minha mãe diz que nunca imaginou que eu voltasse. ‘Por que não emigras? Estavas tão bem em Madrid! Estavas a ganhar tão bem…’” Às vezes, a mulher, de 34 anos, pergunta-se se fez bem. “Falo com amigos que ficaram no Porto ou em Madrid e vejo que também sofreram com a crise. Acabam por estar a fazer mais ou menos o mesmo do que eu, mas queixam-se imenso que não têm tempo para mais nada.”
A maternidade ajudou a decidir. “Prefiro dar melhor qualidade de vida ao meu filho. Não quero ter de o levantar às cinco ou seis da manhã para o levar para o infantário.” E em Madrid, pagava 350 euros por um quarto. Na Covilhã, paga 350 euros por uma pequena casa com lareira, horta e pomar. Sente falta da vida cultural, claro. “Na cidade grande, com a vida que levava muitas vezes ao final do dia já não tinha força para ir ver a peça ou o concerto ou a exposição. Agora, quando quero mesmo ir, vou. Não tenho correntes nos pés. Se for preciso, vou a Lisboa, ao Porto, a Madrid.”
Está a lançar um negócio, em parceria com um arquitecto. Quer fazer peças únicas, por encomenda, usando lã e restos da indústria. “A cidade ainda está muito presa ao passado, mas isso não é mau, desde que se sabia aproveitar esse passado para olhar para o futuro”, acredita. O slogan da cidade é A Tecer o Futuro. E a imagem gráfica foi criada por uma designer que se formou na UBI e estagiou numa fábrica de lanifícios.
Os repórteres percorreram o país com o apoio da bolsa de criação jornalística “Aquele outro mundo que é o mundo”, atribuída pela ACEP, a Associação Coolpolitics, o CEIS20/UCoimbra e o CEsA-ISEG/ULisboa, com financiamento da Cooperação Portuguesa e da Fundação C. Gulbenkian.