Revisitar os clássicos

Francisco Tropa queria fazer uma fonte. Para isso, debruçou-se sobre o mito de Dânae.

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Se nos falarem de Dânae, personagem da mitologia grega, talvez a associemos de imediato à chuva de ouro que constitui o episódio mais conhecido da lenda que conta a sua história. Dânae, como Europa, por exemplo, é uma das mulheres que Zeus escolhe para mãe de um filho seu. O pai tinha-a aprisionado numa torre depois de saber, por um oráculo, que acabaria por perecer às mãos de um neto. Dânae é então fecundada por Zeus sob a forma de uma chuva de ouro. Mais tarde, o pai encerra-a com o filho dentro de uma caixa, deitando-a ao mar. Contra todas as probabilidades, mãe e filho sobrevivem, aportam a uma ilha e o rapaz, feito homem, cumpre obviamente a profecia que tinha sido feita ao avô. Não sem antes matar a famosa Medusa, pois trata-se nem mais, nem menos, de Perseu.

Como sempre sucede, os mitos antigos são férteis em episódios rocambolescos, mágicos, terríveis. Neles, o desejo é explícito e inevitável, e está quase sempre ligado intimamente ao drama e à morte, facto que séculos depois da criação destas narrativas a psicanálise não se cansou de analisar. No caso de Dânae, conta Francisco Tropa, que tratou esta lenda na sua mais recente exposição, a presença da água é fulcral, tanto sob a forma de uma chuva (de ouro, é certo) como sob a forma do líquido salgado em que mãe e filho flutuam para a vida, num segundo nascimento que duplica quase ponto por ponto as condições do primeiro.

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Tropa é autor de uma obra notável onde a escultura se faz presente a partir de elementos pouco habituais, que parecem contradizer a inevitabilidade das leis da física

Dentro de uma caixa, como num segundo útero, imersos no mar, recordam-nos Moisés descendo o rio Nilo numa cesta de vime, recolhido pela filha do faraó, numa associação imediata que se cria com esta estória. E contudo, através dos séculos (mas sobretudo depois do Renascimento), artistas e pintores não se interessaram por este episódio, preferindo-lhe, para tratar o tema, o momento em que a chuva dourada desce sobre a rapariga. É certo que esse momento lhes permitia também representar uma mulher nua, meio descomposta nos seus aposentos, assistida aqui e ali por uma criada velha que praticamente introduz uma reflexão sobre a fugacidade da beleza no conjunto da pintura, e isto supostamente sem incorrer no libelo da obscenidade. Francisco Tropa apropria-se do mito, recusa a figuração humana e afirma que há muito tempo que queria fazer uma fonte.

A peça em exposição na sala da galeria é de facto uma fonte, composta por dois elementos, e neles a água possui um papel obviamente essencial. Num dos elementos está incluído um repuxo. No outro, uma pequena torneira despeja água numa concavidade, que a derrama sobre a superfície plana e inclinada pintada de dourado. Esta superfície também existe no primeiro elemento. E sim, é possível e quase inevitável que associemos uma qualidade feminina à forma que recebe, e uma qualidade masculina ao mecanismo que derrama água.

Francisco Tropa é autor de uma obra notável onde a escultura se faz presente a partir de elementos pouco habituais, que muitas vezes parecem contradizer a inevitabilidade das leis da física. Neste caso, é certo que existem objectos permanentes e duráveis. Mas a forma do jacto de água, a perfeição das gotas sobre a superfície pintada de dourado do metal são também parte da obra e sem elas, forma e perfeição, essa obra não existe. Não por acaso, a mesma forma tridimensional e o mesmo conceito de perfeição são legados gregos, dos quais não é possível abstrair quando se fala de uma lenda dessa antiga civilização. Não existe mito sem que nos interroguemos sobre o fascínio da beleza, beleza essa de que a arte (e, mais tarde, a natureza) eram obrigatoriamente reflexo.

O facto de a sala da galeria Quadrado Azul abrir, na sua parede do fundo, sobre um jardim, facto único num lugar de exposições deste tipo, acrescenta sentido ao que dizemos, bem como à reflexão que Francisco Tropa tem vindo a realizar desde há uns anos sobre a cultura clássica que nos fundamenta a nós, ocidentais. É que se o belo, que foi em tempos prerrogativa dos deuses, parece hoje desertar tantas vezes a arte, ele permanece no modo como recriamos a natureza dentro dos limites da cidade.

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