Quando Johnson se opunha ao "Brexit" mas só num "exercício" argumentativo
Artigo descrevia consequências desastrosas da saída e defendia a permanência do Reino Unido na UE, quando Johnson se preparava para assumir campanha pela saída.
Foi um dos rostos da campanha em defesa da saída do Reino Unido da União Europeia e o prémio é a pasta dos Negócios Estrangeiros que agora ocupa no Governo de Theresa May, ao leme do país desde que David Cameron se demitiu, na sequência da vitória do “Brexit” no referendo de Junho.
“Se o Reino Unido escolher ficar será um golpe de sorte para a Europa e para o mundo.”, escreveu Boris Johnson num artigo de Fevereiro e agora divulgado. Sair, pelo contrário, seria arriscar “um choque económico” e caminhar para “a explosão” do próprio país.
A contribuição britânica para o orçamento da União, continuava o ex-mayor de Londres nesse texto, “parece bastante modesta” se considerarmos as vantagens do acesso ilimitado a um mercado único “à nossa porta”. Há mais: “Por que é que estamos tão determinados em virar as costas […]. Interroguem-se; apesar de todas os defeitos e decepções, querem verdadeiramente que o Reino Unido deixe a UE?”.
Segundo diz agora Johnson, essa coluna foi escrita quando ele “lutava com o tema” e o texto não passa de um exercício em que tentou defender “a alternativa” ao que o próprio pensava.
O artigo, insiste, tem até um tom de “semi-paródia”. Garantindo que não mudou de ideias, o político lembra que “toda a gente estava então a tentar decidir-se”. “E eu escrevi um longo artigo que resultou esmagadoramente na defesa de sair”, descreve, em declarações ao canal Sky News. “Depois, pensei, é melhor ver se consigo defender eu próprio a alternativa, então escrevi um artigo, uma semi-paródia no sentido oposto, que encontrou misteriosamente o caminho até ao jornal desta manhã, penso que o terei enviado a um amigo.”
O artigo – cuja existência já era conhecida desde o livro All Out War: the Full Story of How Brexit Sank Britain’s Political Class – foi publicado pelo Sunday Times; de acordo com o jornal, Johnson "tentou enterrar" o texto. No livro, assinado precisamente pelo editor de Política do Times, Tim Shipman, também se escreve que Johnson “queria esmurrar” o seu aliado nesta campanha Michael Gove, quando o ex-ministro da Justiça anunciou a sua candidatura ao Governo, um passo que destruiu as possibilidades de ambos chegarem a primeiro-ministro e abriu caminho para May.
“Oportunistas” e “traições”
“O papel do Governo é pôr em prática o resultado do referendo. Os britânicos falaram e nós vamos fazer o que eles decidiram”, comentou à BBC Priti Patel, ministra do Desenvolvimento Internacional. Patel avisa os deputados britânicos para não “usarem o Parlamento como veículo para subverter a vontade democrática do povo britânico”, numa referência à campanha actual que envolve vários partidos e visa forçar um voto sobre a estratégia negocial a adoptar perante a União Europeia.
Claro que os derrotados no referendo de 23 de Junho não resistiram a acusar Johnson de várias coisas, incluindo “traição”. Para Tom Brake, porta-voz dos Liberais Democratas para a Política Externa, o texto “confirma as suspeitas de muitas pessoas, ele colocou a sua carreira à frente dos interesses do país”. Brake acrescenta: “Boris estava completamente certo sobre a ameaça do Brexit à economia e à unidade do país – só é pena que não tenha ouvido o seu próprio aviso”.
O ex-primeiro-ministro adjunto, Nick Clegg (durante o Governo de coligação Trabalhistas/ LibDem), do mesmo partido, sugere que Johnson e outros “oportunistas” que apoiaram o Brexit mentiram aos britânicos durante a campanha. “Se eu tivesse votado no Brexit, sentir-me-ia cada vez mais traído por ter decidido acreditando que estas pessoas sabiam o que estavam a fazer”, diz Clegg, ouvido também pela BBC.
A Irlanda e a Escócia
Enquanto isso, o “Brexit” continua a causar preocupação. O primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, anunciou este domingo um encontro de líderes políticos dos dois lados da fronteira para considerar passos a tomar na preparação da saída do Reino Unido da UE – que privará a Irlanda de um aliado em Bruxelas, já que os dois países tomavam muitas vezes posições semelhantes em questões fiscais, de comércio, regulação, e serviços financeiros.
Dentro do Reino Unido, a líder do governo autónomo escocês, Nicola Sturgeon, avisou que levará a cabo um novo referendo à independência da Escócia se o Governo optar por um “hard Brexit” – em que o Reino Unido abandonaria o mercado único e a união aduaneira para assegurar o controlo da política de imigração.
No referendo, 52% votaram a favor da saída do Reino Unido. A primeira-ministra já esclareceu que até ao fim de Março de 2017 invocará o artigo 50 do Tratado de Lisboa, dando início às negociações oficias com a UE.