Luto pelo jornalismo? A resposta do Washington Post
O jornalismo também tem de resistir à pressão dos cliques, ser uma alternativa ao já conhecido, confortável ou polarizado.
1. O jornalista Martin Baron ficou célebre quando Spotlight ganhou o óscar de melhor filme. Os actores de Spotlight retratam a investigação sobre pedofilia dentro da Igreja Católica feita pelo Boston Globe em 2001. Baron era o director do jornal, a sua equipa dedicou sete meses a esse trabalho e antes do filme já tinha ganho um Pulitzer. Agora director do Washington Post (WP), coube a Baron abrir a edição deste ano do Festival Gabo de Jornalismo (nascido da visão de Gabriel García Márquez) para a plateia que na noite de 29 de Setembro lotava o Jardim Botânico de Medellín, na Colômbia, multiplicada por transmissão directa na TV e em streaming. Parecia haver algo de paradoxal nisso: os jornalistas premiados de 2016, que daí a pouco subiriam ao palco, vinham quase todos de novos meios alternativos ibero-americanos; as listas de finalistas, de Portugal a El Salvador, a partir das quais eles tinham sido escolhidos também haviam sido dominadas por meios alternativos; e o convidado de quem se esperava um “estado da arte” do jornalismo em 2016 era o director de um grande meio tradicional. O que Martin Baron tentou fazer durante o seu longo discurso, creio, foi ultrapassar esse paradoxo defendendo que os meios tradicionais ponham fim ao que ele chama de “luto” pelo jornalismo tradicional, incluindo apropriar-se das armas dos meios alternativos. É uma resposta que levantará várias questões, mas para que possam emergir será preciso dar conta do que Baron disse.
2. Quando o caso Spotlight aconteceu, a banda larga de Internet estava “na infância”. Partilha de vídeos? O YouTube começou em 2005. Navegar no telefone? O iPhone é de 2007. Ou seja, desde então tudo mudou rapidamente. E daqui a quatro anos 80% dos adultos do planeta terão um telefone inteligente, antecipou Baron. O foco são os telemóveis. A palavra-chave será: móvel. E a realidade é: as pessoas já não vão ter com as notícias, ao contrário. Portanto, não vale a pena o jornalismo continuar a fazer “luto” pela realidade como ela era, e o próprio Baron diz que chegou a fazer. “Esse luto deve terminar e nós devemos seguir em frente”, com uma aposta clara na tecnologia de ponta, aliando-se a Google, Facebook, Apple, Twitter, Snapchat, etc.
3. Baron chegou ao WP em 2012. No ano seguinte, o jornal foi comprado pelo fundador da Amazon, Jeff Bezos. O novo dono quis acabar com o velho lema De Washington para Washington e fazer um grande jornal internacional. Mas como, num novo mundo sempre ligado, em que a segurança da imprensa desaparecera? Apropriando-se dele, virando-o a seu favor. Foi assim que o WP apostou
— numa equipa nocturna para identificar as histórias que entretanto tinham acontecido
— em blogues especializados, desde pop a animais
— na imediatez da opinião, com a tendência para desaparecer a ideia de coluna com dia fixo
— em recursos extra para os blogues mais vistos
— em rastrear redes sociais em busca do que está a ser falado
— em publicar mais cedo, nos picos de concentração online, em vez de deixar para a noite
— em experimentar vários títulos e arrumações online, conforme as reacções
— em bases de dados para personalizar recomendações aos leitores
— e numa Rede de Talento WP, em vez das redes tradicionais de correspondentes.
4. Esta parte da Rede de Talento terá sido a que mais imediatamente arrebitou os ouvidos da plateia, na qual havia muitas centenas de jovens vindos de toda a América Latina. No fluente espanhol em que fez todo o discurso, Baron explicou: “Há muitos jornalistas desempregados, sub-empregados, prematuramente retirados ou reformados ainda ansiosos por trabalhar. Também há jornalistas no activo que têm tempo e liberdade para fazer free lance. Com base nisso, criámos uma rede online que nos dá acesso a repórteres, fotógrafos e videógrafos nos Estados Unidos e no mundo. O sistema está altamente automatizado. As pessoas podem fazer upload dos seus perfis do Linkedin e de histórias para que os avaliemos. Com palavras-chave, indicam-nos o tipo de jornalismo que lhes interessa e as áreas em que se especializam. Eles podem propor-nos histórias para o jornal, os blogues ou qualquer secção do site, e nós podemos entregar-lhes rapidamente uma cobertura quando surja uma notícia em qualquer parte.” Enquanto o bruá corria pela plateia, Baron sublinhou: “O sistema de pagamento é fácil e rápido. Antes, pede-se ao editor que classifique o trabalho.” A rede conta já com “2200 jornalistas pelo mundo”. Isto faz com que “não apenas tenhamos gente no local para cobrir a notícia, como gente pelo mundo em busca de histórias interessantes”.
5. Tudo somado, Baron resumiu o que é agora a visão do WP: “Temos ânsias febris por ganhar tráfego online, aprofundar o envolvimento dos nossos leitores e estimular a fidelidade, o que conduz a mais assinaturas, outra das nossas metas.” As pressões desta “indústria” forçam uma atenção “aos nossos consumidores — leitores, espectadores, ouvintes, o que é bom”, crê o director do WP. “Já não há espaço para a auto-indulgência. O trabalho que fazemos deve ressoar num público que por rotina é impaciente, se distrai facilmente e se aborrece depressa. Isto não significa só fazer histórias curtas, ou fazer títulos enganosos, de modo algum. As histórias longas podem atrair leitores e retê-los, mas devem ser escritas de forma convincente e apresentadas em formatos que tenham em conta a forma como hoje se consome a informação. Tudo o que fazemos deve merecer o tempo e a atenção que o público lhe dedica.”
6. Fazendo jus ao modelo pragmático estado-unidense, Baron é um optimista. Sabe que a Internet permite “um mundo de falsidades e conspirações”, mas crê que ela possa ser “uma fonte do bem” e que o jornalismo que se aproprie dela será essencial à democracia. “Os jornalistas que investigam corrupção ou tráfico de droga correm o risco de ser assassinados, sequestrados, mutilados, encarcerados, ao mesmo tempo que põem em risco as suas famílias.” Um grande exemplo disso ia subir pouco depois ao palco para ser premiado: a equipa do jornal digital El Faro, de El Salvador (ver crónica de 3/10), e Baron terá querido prestar-lhe tributo. “Todos os que suportam estas ameaças e seguem adiante são fonte de admiração. Infelizmente, o que acontece aqui na América Latina é parte de um padrão mais amplo a nível mundial. Os governos estão a tornar o nosso trabalho mais difícil através da obstrução, da vigilância e da intimidação. Incluindo os EUA, onde a Primeira Emenda garante liberdade de expressão e de imprensa, enfrentamos ameaças.” De Trump ao WP, em concreto, e à liberdade de expressão em geral.
7. Foi um suplemento de ânimo ver o entusiasmo de tantos jovens jornalistas no Festival Gabo, e ler reportagens de todo o universo ibero-americano (declaração de interesses: como membro do júri final do prémio de texto) feitas com poucos meios e muitos riscos, quase todas em meios alternativos, sobretudo digitais, com uma energia e uma extensão, em tempo e espaço, raramente presentes hoje nos meios tradicionais. Não pensei passar um tempo a sprintar online em Washington, mas pensei passar um tempo com os repórteres nas ruas de El Salvador. Bom para o jornalismo poderem cruzar-se uns e outros, e dois dias depois de Baron falar nos cliques como critério inevitável estar num debate sobre como o jornalismo também tem de resistir à pressão dos cliques: ser uma alternativa ao já conhecido, confortável ou claramente polarizado, àquilo com que é mais fácil uma boa fatia de leitores identificarem-se.