Esses selvagens que se estão todos a matar

1. Carlos Dada fundou um jornal no país mais violento do mundo. Há 18 anos, quando isso aconteceu, era um país saído de uma guerra civil. Hoje é o país com o maior número de homicídios, e o maior número de migrantes em fuga, entre os que supostamente não estão em guerra. Quinta-feira à noite, Carlos subiu a um palco, em Medellín, Colômbia para receber o Prémio de Excelência da Fundação Gabriel García Márquez, o maior reconhecimento possível para qualquer jornalista de um país ibero-americano. Mas não subiu sozinho, o palco ficou cheio, porque pela primeira vez o prémio era para toda a equipa de El Faro, esse diário digital de El Salvador com que Carlos sonhou há 18 anos, e pode ser uma inspiração para qualquer jornalista (http://www.elfaro.net). Toda uma redacção salvadorenha em Medellín, para dizer também o quanto põe esperança no momento histórico que aqui se vive: domingo, 2 de Outubro, os colombianos referendaram o acordo entre o governo e os guerrilheiros das FARC para pôr fim a uma guerra com mais de meio século.

2. “El Salvador foi a última batalha da guerra fria”, diz-me Carlos, entre duas mordidas num kebab, depois de um debate matinal, e de a seguir ter atendido dezenas de estudantes, espectadores, jovens e não tão jovens jornalistas. Estamos sentados num pátio do Jardim Botânico onde o Festival Gabo acontece, com salas cheias, 13 mil inscritos, em grande maioria nascidos depois da guerra civil salvadorenha (1980-1992). “Tivemos um longo conflito patrocinado pelos Estados Unidos, milhões de dólares enviados para o exército, milhões de deslocados, dentro e fora”, recorda Carlos. “Muitos foram para a Califórnia, chegaram ali com famílias desintegradas.” Uns parentes tinham sido mortos, outros estavam a combater, e os que restavam trabalhavam três turnos para sustentar a família. “Isso significou que muitas crianças ficavam sozinhas todo o dia. Então juntavam-se aos gangues do bairro, ou criavam gangues, porque isso lhes dava uma protecção e era uma aventura. Assim se fortaleceram os gangues latinos em Los Angeles, que em Salvador não existiam. Mas quando a guerra civil acabou, os Estados Unidos deportaram dezenas de milhares de salvadorenhos.” Entre eles muitos desses garotos que tinham sido empurrados para os gangues. “Chegaram a um país muito pobre, que vinha de uma guerra, que não tinha instituições, e estava cheio de armas. Era o cocktail perfeito.” Esta é a raiz do fenómeno dos gangues em El Salvador, que hoje devasta o país como nunca, entre combates mútuos, combates com a polícia e a violência de todos sobre a população.

3. “Insisto em mencionar a responsabilidade dos Estados Unidos”, diz Carlos. “Vêem-nos como uns selvagens que se estão a matar, e agora têm de receber os migrantes desses selvagens. Quando são directamente responsáveis por isso.” Carlos acaba de voltar de uma temporada de dois anos a pesquisar lá (Biblioteca de Nova Iorque, para um livro) e Universidade de Yale (a dar aulas de jornalismo). Que reacções tinha quando falava disto? “De surpresa. Como se falasse de um universo desconhecido.” E para dar conta do fosso entre a realidade da América Latina e a forma como os norte-americanos a entendem cita o exemplo do debate que se gerou no ano passado, quando 60 mil crianças centro-americanas chegaram à fronteira dos EUA para se irem reunir com os pais. “Nos Estados Unidos falavam-me disso como uma crise na fronteira sul. Não entendem que a crise não está aí, está no que fez aquelas crianças saíram de casa. No ponto a que pode chegar um pai para mandar vir uma criança sozinha.” Um pai que veio à frente, atravessando todo o México, enfrentando perigos brutais. “Enquanto isso o debate migratório nos EUA é se põem um muro ali ou não.”

4. Quando El Faro começou, a ideia não era cobrir a violência e o crime organizado. Tinham pouco dinheiro, uma redacção de estudantes, não os poderiam proteger dos riscos. Mas, em 2007, ao mergulharem num grande projecto sobre a migração salvadorenha para os Estados Unidos via México perceberam que tinham de ir à raiz. “Entendemos que era impossível perceber isso sem perceber o que se passava em El Salvador e fazia as pessoas fugirem”, conta Óscar Martínez, o repórter do El Faro que coordenou esse projecto, e também veio ao festival em Medellín. “Os Zetas [gangue mexicano] começaram a ver que podiam fazer negócio com aquelas pessoas: sequestros, extorsões, exploração de mulheres para prostituição.” Foi essa rota que Óscar investigou entre 2008 e 2010, com fotógrafos e documentaristas. Daí nasceram dois livros e um documentário. “Percebemos que o verbo não era migrar, era fugir. Não eram migrantes, eram deslocados.” E desde então tudo só piorou. “O ano passado foi o mais violento do século. Com 103 homicídios por cem mil habitantes, El Salvador é o país mais violento do mundo. E este ano começou pior ainda, 22 por dia em vez dos 18 do ano passado.” Têm um poder territorial, exercendo extorsão e ameaçando milhões de salvadorenhos pobres. E já ameaçaram os jornalistas de El Faro de muitas formas. Mas a maior ameaça que esta redacção sente “vem do Estado”, conta Óscar. “Grupos da polícia, que actuam à margem. Polícias encapuçados que retêm jornalistas, os interrogam, ameaçam destruir os carros.” De resto, ameaças de morte por email de várias origens são mato, diz este jornalista, 33 anos, uma filha de três. Já aconteceu irem a sua casa, ameaçarem a família.

5. Este auge de violência tem dez anos, diz Carlos, o co-fundador de El Faro. “Nos primeiros anos, os governos fizeram uma espécie de show de combate mediático, buscando resultados políticos: se tenho mão dura, ganho eleições. Mas a reacção dos gangues foi sofisticarem-se e agora está pior do que nunca. Descobriram que têm poder político também. A capacidade de negociar com mortos: se me dão benefícios prisionais, se não me perseguem então mato menos gente. Isso foi o que aconteceu nos últimos três anos, uma trégua com o governo. E fortaleceu mais os gangues. Agora, com este governo, isso acabou, declararam guerra aos gangues.” Muitos polícias começaram a aparecer mortos. E a fazer massacres para vingar essas mortes. “Quando crês que já não pode piorar, piora. Na semana passada, uma vila teve de abrir um refúgio para gente que está a fugir dos gangues. É o primeiro refúgio depois do fim da guerra em El Salvador. Em muitos bairros, se não vais embora em 24 horas, matam-te. Expulsam bairros inteiros. E o papel da polícia é simplesmente acompanhar a saída. Sabem que não podem garantir segurança.” Em El Salvador, um país pequeno, densamente povoado, o resumo da vida, hoje, é: milhões de pessoas reféns. É essa vida que El Faro tenta retractar, contextualizando, explicando, interrogando. Porque, como diz o seu actual director José Luiz Sanz, e ao contrário do que o jornalismo curto, apressado, obcecado com os cliques, tende a propagar, “a violência não é inexplicável, é lógica”. Tem razões, antecedentes, uma história. Sanz é director agora porque quando Carlos voltou da sua sabática estado-unidense, em belas bibliotecas, com belas condições, tinha um só desejo: deixar de ser director, voltar às ruas de El Salvador, e a ser repórter. O seu percurso foi uma das muitas inspirações para milhares de jovens em Medellín, nesta semana histórica para a paz.

Nota: Estive em Medellín a convite da Fundação García Márquez, como jurada do prémio de Texto, um dos quatro anuais, além do Prémio de Excelência.

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