Lav Diaz, quatro horas, uma curta
Este sábado o júri atribui os prémios da 73.ª edição do Festival de Veneza. Há os melhores filmes e há os favoritos mas é impossível de adivinhar o que se joga entre os jurados: Lav Diaz? Kusturica? Ozon?Tom Ford? Larraín?
Seis meses depois das oito horas de A Lullaby to the Sorrowful Mystery, apresentado em Fevereiro em Berlim, o filipino Lav Diaz apresentou no concurso The Woman who Left, quatro horas de duração, ou seja, quase uma curta - nove horas durava Death in the Land of Encantos (secção Horizontes em Veneza 2007), cinco e meia From What is Before (Locarno 2014).
Sobre a duração dos filmes de Diaz, cabe perguntar se ela sai mesmo do interior do material, se é necessária, ou se é imposta (já) como assinatura. Não haverá resposta de um só sentido, as dúvidas podem assaltar-nos durante a experiência e serem eliminadas logo a seguir por um momento de redenção – há tempo para tudo isso acontecer.
É verdade que The Woman who Left está a ser tomado como mais “sucinto”, “coeso” dos últimos gestos de Diaz. Mas ainda assim há pedaços em que o recorte desfoca, a indulgência toma conta, e parece que o que vemos foi o que se conseguiu fazer, e não se conseguiu melhor.
O preto e branco contrastado, queimado, Pedro Costa, Bresson, Straub/Huillet … as referências que se atiram são estas, mas, sem querer descobrir a pólvora, o nome que nos vem à memória é o de Lino Brocka (1939-1991), o realizador de Insiang, o Lírio de Manila (1976), ou de Jaguar (1979).
Se os filmes de Diaz são experiências sobre o espaço da História filipina, The Woman who Left pode ser então uma experiência no espaço da História do cinema filipino, inscrevendo-se numa tradição melodramática e política, de trabalho a partir dos géneros populares. Brocka, nos grandes momentos, foi incandescente cultor disso. Alguém como Brillante Mendoza parte também daí. Este é um melodrama, no feminino, e sempre que se mantém próximo dessa matriz, nocturna e fantasmagórica, não secando completamente as viscosidades, deixando-as como possibilidade, The Woman who Left impõe-se.
É possível delirar, aliás, com esta história de uma mulher que sai da prisão onde esteve presa, injustamente, durante 30 anos e regressa à vida, ou a uma aparência de vida, porque talvez tenha ficado condenada a habitar, como um super-herói sombrio, o mundo dos fantasmas: nos anos 40, poderia ter sido um veículo para a sacrificial abnegação de Joan Crawford.
O júri decide
Tal como em relação à duração, um prémio num festival para um filme de Lav Diaz tornou-se de rigueur. Mas é tentar adivinhar, porque não se consegue penetrar as dinâmicas internas de um grupo de jurados de nove pessoas: o júri presidido por Sam Mendes é integrado pela cantora e artista visual Laurie Anderson, pelas actrizes Gemma Arterton, Nina Hoss, Chiara Mastroianni e Zhao Wei, pelos realizadores Joshua Oppenheimer, Lorenzo Vigas, e pelo argumentista Giancarlo de Cataldo.
Numa escolha subjectiva, os filmes de Kusturica (On The Milky Road), Wim Wenders (Les beaux jours d’Aranjuez, texto de Peter Handke), Stéphane Brizé (Une Vie, adaptando uma obra de Maupassant que já tinha sido adaptada por Alexander Astruc) e François Ozon (Frantz, adaptação de uma peça de Maurice Rostand que já tinha sido adaptada por Erns Lubitsch), ficam como os melhores do concurso.
(Dois realizadores franceses em concurso, dois belos filmes, chapeau!, os italianos ficaram bem lá atrás, o que se viu foi quase sempre confrangedor e o último da representação, Questi Giorni, de Giuseppe Piccioni, indolente e muito satisfeito consigo próprio na sua narrativa em fuga de um grupo de raparigas que deixam o seu tempo de glória, a adolescência, não alterou a situação.)
Curiosamente, sobre Kusturica, Brizé e Ozon paira a sombra de uma suposta dissidência em relação aos “temas de actualidade”. Já ouvimos, por exemplo, Brizé ser condenado por, a seguir à Lei do Mercado (o desemprego, o trabalho), ter feito “um filme de época”, ter-se fechado nos sentimentos – tal como Ozon -, o que é passar ao lado deles: são filmes que minam por dentro o género, deixando-se ser tocados como se fossem sobre hoje, e são de hoje, mesmo se um se passa no século XIX e outro no final da I Guerra.
É o oposto, aliás, do que faz Paradise, de Andrei Konchalovsky, cineasta que parecia ter encontrado uma nova vida, mais solta, mais livre (e mais humilde), quando há dois anos apresentou em Veneza The Postman’s White Nights, descobrindo as ficções do real.
É que agora, com Paradise, em que filma uma teia de relações entre opressores nazis e prisioneiros nos campos de concentração – “tema” sem época que subjuga - o russo exercita uma retórica, narrativa e visual (também é a preto e branco), que, esta sim, é “datada”, vetusta. Parece esquecer-se arrogantemente das negociações que o cinema tem feito com a figuração do Holocausto, a última das quais chamou-se O Filho de Saul, de László Nemes.
Sobre prémios, que serão anunciados sábado à noite, se calhar faz sentido contar ainda com argentinos e americanos, porque a algo de consensual apelaram aqui El Ciudadano Ilustre, de Mariano Cohn e Gaston Duprat, Nocturnal Animals, de Tom Ford, Jackie, de Pablo Larraín – e não se sabe o que é que o “duelo” entre os festivais de Veneza e Toronto a ver quem é que se torna mais decisivo para Hollywood, não se sabe o que é que o recente orgulho veneziano a mostrar trabalho (muito se escreveu sobre o facto de nos últimos três anos o Óscar ter vindo daqui, de Veneza, e dos filmes de abertura: Gravidade, Birdman, O Caso Spotlight), pode importar ao júri.