É preciso falar sobre Trump, mas também ouvir os seus apoiantes
É fácil pôr tudo no mesmo saco: são racistas, pouco instruídos e fanáticos das armas. Mas também há milhões de eleitores que foram atirados para fora do comboio da economia e nenhum partido pode fazer o papel de inocente.
Em Abril de 2008, quando a balança das eleições primárias no Partido Democrata começava a pender para o lado de Barack Obama, o candidato viu-se debaixo de fogo da campanha de Hillary Clinton por causa de uma declaração que antecipou, em parte, o surpreendente sucesso de Donald Trump nas eleições deste ano.
Os eleitores de estados como a Pensilvânia, com a sua paisagem tomada de assalto por fábricas decrépitas que privaram milhares e milhares de uma vida digna para si e para as suas famílias, estavam ressentidos e agarravam-se "às armas, à religião, à antipatia em relação a pessoas diferentes delas, a uma postura anti-imigração e anti-comércio internacional para explicarem as suas frustrações", disse Obama perante uma audiência de doadores ricos na cosmopolita São Francisco.
O futuro nomeado do Partido Republicano nesse ano, John McCain, acusou Obama de "elitismo" e "condescendência", e Hillary Clinton foi ainda mais longe, numas eleições primárias muito duras entre os dois políticos que mais tarde viriam a juntar-se na Administração, ele como Presidente, ela como secretária de Estado: "Os habitantes da Pensilvânia não precisam de um Presidente que olha para eles de cima para baixo; precisam de um Presidente que os defenda, que lute por eles, que trabalhe com afinco para melhorar o futuro deles, dos seus postos de trabalho, das suas famílias."
Era o habitual combate político pelo voto da chamada classe trabalhadora branca e com poucos rendimentos, uma importante parte do eleitorado dos Estados Unidos também conhecida nas divisões das sondagens como os eleitores norte-americanos que nunca chegaram à universidade.
O que ninguém esperava nessa altura, é que menos de uma década mais tarde uma grande parte dessa população iria ser presenteada com um mensageiro feito à medida para as suas preocupações – Donald Trump, o ser humano complexo que saiu do seu luxuoso escritório em Manhattan para falar, gritar e tweetar em nome daquele exército de descontentes que se agarra às armas, à religião e à xenofobia, nas palavras de Barack Obama em 2008.
Nas eleições primárias do Partido Republicano deste ano, Donald Trump esmagou toda a concorrência, incluindo senadores, governadores e um membro da dinastia Bush. E essa superioridade foi mais vincada entre aquela parcela do eleitorado a que muitos políticos prometem soluções de quatro em quatros anos e que muitos especialistas tentam compreender quando há eleições, mas que acaba sempre na mesma depois de o circo ter saído da cidade: sem os postos de trabalho que já tiveram, e sem as qualificações para procurarem outros em sintonia com a economia moderna.
"É uma população não urbana, trabalhadores de colarinho azul, e que agora, aparentemente, está muito zangada. São pessoas que não viajaram muito. As coisas têm mudado muito à volta delas, mas elas vivem em áreas que estão estagnadas em vários aspectos", disse ao jornal New York Times o demógrafo William Frey, da Brookings Institution, num resumo que poderia ter sido catalogado em 2008 por John McCain e Hillary Clinton como elitista e condescendente.
Com o avançar da campanha para as eleições gerais – e em especial no meio do autêntico ciclo de cinema de terror para Donald Trump que tem sido as semanas pós-convenções do Partido Republicano e do Partido Democrata –, a popularidade do magnata do imobiliário caiu aos trambolhões nas sondagens, e essa queda arrastou também muitos eleitores da tal classe trabalhadora branca e com poucos rendimentos.
Mas se há alguma certeza sobre as eleições deste ano, é que nas eleições deste ano é muito arriscado ter alguma certeza – por mais que lidere as sondagens, Hillary Clinton não tem conseguido aumentar a sua popularidade e ainda há três meses de uma campanha feroz pela frente, incluindo três importantes debates televisivos.
Mesmo que Clinton vença com uma vantagem histórica, a base de apoio de Donald Trump não vai calar-se no dia 8 de Novembro – e muito menos vai desaparecer, como argumenta no seu livro mais recente a historiadora Nancy Isenberg, professora de História na Universidade Estadual do Luisiana.
Essa é uma realidade que o chamado establishment, tanto no Partido Republicano como no Partido Democrata, terá de enfrentar. Mais do que isso, os dois grandes partidos têm de encontrar soluções para muitos eleitores ressentidos que se deixaram apanhar pela onda de demagogia e populismo de Donald Trump – não basta chamar-lhes racistas (e muitos são) e burros (passe a redundância), tal como não bastou a Barack Obama chamar-lhes fanáticos das armas e da religião em 2008.
"As explicações sobre o fenómeno Trump contêm quase sempre uma linguagem de desprezo sobre a ideia de classe. Os jornalistas menos circunspectos têm reduzido a base de apoio do candidato republicano ao 'white trash' e ao 'trailer trash', e descrevem os protestos deles como 'a vingança das classes mais baixas'", escreveu de forma crítica Nancy Isenberg num artigo publicado no site Daily Beast, onde explica o argumento principal do seu livro White Trash: The 400-Year Untold History of Class in America (Lixo branco: os 400 anos da História nunca contada sobre as classes na América).
No livro, Isenberg defende a ideia de que "a independência [dos Estados Unidos em relação ao império britânico] não apagou de forma mágica o sistema britânico de classes", e apenas perpetuou, até aos dias de hoje, "a fixação britânica com a ideia de preguiça, segundo a qual os pobres são culpados por não conseguirem trabalhar muito, comprar terras, produzir herdeiros saudáveis e ter uma parte do bolo económico na sociedade".
Entre os apoiantes de Donald Trump há racistas e há pessoas com as mais variadas atitudes e comportamentos que ficariam melhor num livro de História do que nos comícios do candidato, mas há também muitos que se sentem justificadamente postos de lado – e é para estes que o Partido Republicano pós-Trump e o Partido Democrata devem olhar com mais atenção no futuro; se não o fizerem, perdem a legitimidade para dizerem que foram apanhados de surpresa por um outro qualquer Donald Trump.