Clinton aceita nomeação histórica e constrói uma ponte para os conservadores anti-Trump
É difícil bater as frases curtas e directas de Donald Trump, mas o discurso de Hillary Clinton foi o mais seguro e poderoso de toda a sua carreira.
A campanha eleitoral deste ano nos Estados Unidos já era a mais bizarra e divisiva das últimas décadas, mas o último dia da convenção do Partido Democrata conseguiu juntar dois momentos históricos num só discurso, um deles supreendente: ao aceitar a nomeação como a primeira mulher a candidatar-se à Casa Branca por um dos maiores partidos do país, Hillary Clinton e muitos outros oradores antes dela passaram a ideia de que os verdadeiros patriotas devem manter-se longe do Partido Republicano de Donald Trump.
Aproveitando a rampa de lançamento instalada pelo Presidente Barack Obama e pelo vice-presidente Joe Biden, na quarta-feira, Hillary Clinton marcou a diferença entre as opções que os eleitores norte-americanos vão ter pela frente nas eleições em Novembro: ou ficam no país onde vive Donald Trump – virado para dentro, engolido por uma onda de violência e acossado pelo medo –, ou mudam-se para o país onde ela vive – com muitos problemas, mas apostado em melhorar a vida do povo “mais dinâmico e mais diverso” e em trabalhar com os seus aliados em todo o mundo.
The next president—and her husband. pic.twitter.com/W5A0rHs21y
— Hillary Clinton (@HillaryClinton) July 29, 2016
Numa época recheada de análises sobre problemas complexos preparadas para caberem numa mensagem no Twitter, é difícil bater as frases curtas e directas de Donald Trump, mas o discurso de Hillary Clinton foi o mais seguro e poderoso de toda a sua carreira – mantendo-se, como era de esperar, colado a uma fórmula mais tradicional.
Os eleitores ficam a saber que a luta pela Casa Branca não é apenas uma corrida para ver quem chega primeiro à Sala Oval, com dois candidatos de partidos diferentes mas com leituras aproximadas sobre o papel dos Estados Unidos no mundo; é uma escolha entre dois mundos totalmente diferentes, “o momento de acertar as contas”, considera Hillary Clinton.
“Forças poderosas ameaçam dividir-nos, os laços de confiança e de respeito estão a desgastar-se. E, tal como no tempo dos nossos pais [fundadores], não há garantias. Temos de ser nós a decidir. Temos de decidir se vamos trabalhar em conjunto para que todos possamos erguer-nos em conjunto”, disse a candidata do Partido Democrata, que se apresentou durante o seu discurso como uma patriota progressista.
O discurso de Donald Trump na convenção do Partido Republicano, na semana passada, centrou-se na ideia de que ele sozinho conseguirá “consertar o país”, o que abriu as portas ao Partido Democrata para piscar o olho aos conservadores mais tradicionais que não se revêem no seu discurso populista – se é verdade que Trump conseguiu mais de 13 milhões de votos durante as eleições primárias, também é verdade que muitas figuras influentes no partido viraram-lhe as costas e outras, no máximo, engoliram um sapo para tentarem salvar as maiorias que têm nas duas câmaras do Congresso.
E Clinton aproveitou esse desconforto no Partido Republicano: “Seja de que partido forem, e mesmo que não pertençam a nenhum partido, se partilharem estas crenças, esta é a vossa campanha.”
Trump nunca "nunca sacrificou nada nem ninguém”
Em muitos momentos, o último dia da convenção do Partido Democrata, em Filadélfia, pareceu mais uma convenção do Partido Republicano pré-Trump, com o pavilhão Wells Fargo inundado de bandeiras dos Estados Unidos e cânticos de “USA! USA! USA!”
Um dos discursos foi proferido pelo general John Allen, enviado do Presidente Obama para supervisionar a coligação contra o auto-proclamado Estado Islâmico entre 2014 e 2015, e que levou consigo para o palco vários veteranos de guerra. Foi também o momento em que alguns apoiantes de Bernie Sanders começaram a gritar “Não à guerra”, abafados imediatamente pelos restantes delegados com mais “USA! USA! USA!”
Outro – talvez o mais emotivo da noite – coube ao muçulmano Khizr Khan, pai de Humayun Khan, um capitão do Exército norte-americano que morreu no Iraque em 2004 na explosão de um carro armadilhado. Depois de ter ordenado aos seus soldados que recuassem, Khan avançou em direcção ao veículo e morreu na explosão.
“Donald Trump mancha constantemente o carácter dos muçulmanos. Ele desrespeita outras minorias, as mulheres, juízes, até a liderança do seu próprio partido. Promete construir muros e impedir-nos de entrar neste país. Donald Trump, você pede que os americanos ponham o seu futuro nas suas mãos. Deixe-me que lhe pergunte: alguma vez leu a Constituição dos Estados Unidos?”, perguntou Khizr Khan, enquanto tirava do bolso da camisa uma cópia da Constituição: “Posso emprestar-lhe uma. Neste documento, procure as palavras ‘liberdade’ e ‘protecção igual perante a lei’.”
Foi um momento emotivo, que deixou muitos dos que assistiam em lágrimas, e dirigido também a quem no Partido Republicano tem orgulho nos seus heróis – e este era um militar muçulmano, nascido nos Emirados Árabes Unidos que emigrou para os Estados Unidos quando tinha quatro anos. “Você nunca sacrificou nada nem ninguém”, disse o pai de Humayun Khan a Donald Trump, através das câmaras de televisão.
Mas o discurso mais esperado era o de Hillary Clinton, no momento mais importante dos seus 25 anos de vida pública, desde que se lançou na corrida à Casa Branca do seu marido, Bill Clinton. Depois disso foi senadora de Nova Iorque durante oito anos e passou mais quatro anos como secretária de Estado da Administração Obama – o eleitorado conhece muito bem o currículo de Hillary Clinton, mas muitos vêem-na como a encarnação de todos os males do mundo e 68% dizem que não confiam nela, um número ainda assim ligeiramente inferior ao dos que dizem não confiar em Donald Trump.
"Temos de enfrentar os bullies"
Foi por isso uma oportunidade para Clinton se apresentar não só como uma pessoa qualificada para a função de Presidente (disso poucos duvidam), mas principalmente como um ser humano capaz de explicar a razão de tanta desconfiança. E esse tema foi abordado de forma directa: “A verdade é que durante todos estes anos de serviço público, a parte do ‘serviço’ foi sempre mais fácil para mim do que a parte ‘pública’. Percebo que algumas pessoas simplesmente não sabem o que pensar sobre mim”, disse a candidata, antes de se lançar numa viagem ao passado, recordando a vida dura do seu avô paterno, em Scranton, na Pensilvânia, e a educão da sua mãe, que a preparou “para enfentar os bullies”, numa referência pouco subtil a Donald Trump.
“Muitas vezes tive de me levantar e de voltar ao jogo. Tal como muitas outras coisas, foi o que aprendi com a minha mãe. Ela nunca me deixou recuar de nenhum desafio. Quando me tentava esconder de um bully do meu bairro, ela fechava-me a porta e diziam-me ‘Volta para lá’. E tinha razão. Temos de enfrentar os bullies.”
O candidato do Partido Republicano foi uma figura sempre presente no discurso, e foi mais uma vez arrasado, depois do aquecimento feito na quarta-feira por Joe Biden, Barack Obama e o multimilionário Michael Boomberg
Foi uma amostra da linha de ataque que Clinton vai usar contra o imprevisível Trump no primeiro debate a dois, marcado para 26 de Setembro.
"I refuse to believe we can't find common ground here. We have to heal the divides in our country.” —Hillary https://t.co/hGRbyjBeMl
— Hillary Clinton (@HillaryClinton) July 29, 2016
“A aposta dele é que os perigos do mundo actual nos ceguem perante as suas promessas ilimitadas. Ele levou o Partido Republicano para muito longe, do ‘Amanhecer na América’ [lema de Ronald Reagan em 1984] para a ‘Meia-noite na América. Ele quer que tenhamos medo do futuro e que tenhamos medo uns dos outros”, disse Clinton. Com isso lembrava também aos republicanos descontentes que o seu partido já não é o mesmo – e o facto de uma referência a Ronald Reagan ter sido aplaudida numa convenção do Partido Democrata não podia ser mais ilustrativa do cenário actual da política norre-americana.
Propostas concretas
Ao contrário de Donald Trump, que guarda segredo sobre como vai cumprir as promessas genéricas que faz (“Acreditem em mim” é talvez a mais elaborada), Hillary Clinton apresentou um programa com propostas concretas, desde a expansão do serviço nacional de saúde, à gratuitidade do ensino universitário para as pessoas com menos redimentos, passando pela criação de mais postos de trabalho em território norte-americano.
Muitas destas propostas partiram do seu adversário nas primárias, Bernie Sanders, que recebeu um agradecimento de Hillary Clinton nos primeiros momentos do discurso. “Bernie, a tua campanha inspirou milhões de americanos, particularmente os mais jovens, que puseram os seus corações e as suas almas nas nossas primárias. Puseste os temas da economia e da justiça social acima de tudo, onde elas devem estar. E a todos os teus apoiantes aqui e em todo o país, quero que saibam que vos ouvi. A vossa causa é a nossa causa”, disse Clinton, sem que fosse impossível não ouvir algumas vaias dos apoiantes mais fervorosos de Bernie Sanders no pavilhão.
Mas esta abertura que a campanha de Clinton viu e parece apostada em explorar – piscar o olho aos anti-Trump e tentar puxar os apoiantes de Bernie Sanders – é um jogo de cintura complicado, disse ao PÚBLICO o comentador e especialista em sondagens John Zogby.
“O problema é que quanto mais Hillary Clinton ceder aos apoiantes de Bernie Sanders – e ela tem-no feito –, mais poderá alienar os eleitores do centro, de quem precisa. Não vai ser uma campanha fácil para ela. Muitos dos apoiantes de Bernie Sanders não viveram os anos dos Clinton e não conhecem todas as suas histórias. Mas há uma pessoa que vai garantir que eles vão conhecê-las, e esse alguém é Donald Trump”, considera John Zogby, salientando que ainda é muito cedo para ter uma ideia do que vai acontecer em Novembro.
“Olhando para a situação actual, o resultado deste ano é incerto. Em princípio, um candidato do Partido Democrata tinha condições para já ter isto resolvido. A demografia está do lado do Partido Democrata, devia ser uma vitória fácil. A verdade é que esta corrida não deveria sequer ser renhida, mas o facto é que está a ser porque muitos eleitores ainda não conseguem assimilar a ideia de votar em Hillary Clinton”, diz o especialista.
E a principal razão só tem um nome: apesar de ser mulher, e de essa oportunidade histórica também pesar, essa mulher é Hillary Clinton, e ainda é cedo para saber se o seu discurso de aceitação vai convencer quem estava indeciso. “Há uma forma de olhar para isto”, explica Zogby: “Joe Biden, ou mesmo John Kerry, são ambos parte do establishment, e é verdade que os eleitores querem uma mudança. Mas por outro lado, nenhum deles carrega uma bagagem tão pesada junto dos eleitores como Hillary Clinton.”